O risco de cortar direitos

Liszt Vieira e Mariza Cassús

02/12/2016

 

 

A Câmara Federal aprovou na madrugada de quarta-feira o projeto de Lei Anticorrupção. Das 10 Medidas apresentadas pelo Ministério Público, oito foram cortadas, entre as quais as propostas polêmicas de “reportante do bem”, restrição ao habeas corpus, uso de provas ilícitas, teste de integridade para servidores públicos etc. E foi acrescentado o crime de abuso de autoridade por parte de promotores e juízes.

O Ministério Público sempre foi uma instituição respeitável. Ultimamente, porém, vem sofrendo um processo de politização. A Polícia Federal sempre foi mais sensível a pressões para direcionar a investigação a determinados alvos. Por isso, foi surpreendente aquele show midiático dos procuradores da Lava-Jato na acusação a Lula, quando admitiram que a prova “não era cabal”, o que significa insuficiência de provas, que, por si só, justificaria a absolvição do réu.

Até agora, muitos políticos foram acusados, mas poucos investigados, a começar pelo Ministério de Temer. As prisões de Cunha e Cabral foram casos excepcionais: até as pedras da rua gritavam seus nomes!. A longa lista dos financiados pela Odebrecht, que ainda não veio à luz, vai abrir um novo capítulo pela provável impossibilidade de investigar todos os delatados, o que reforçaria o temor da “seletividade” política de que a Lava-Jato foi acusada.

Temos visto casos de abuso de poder, desde a condução coercitiva de Lula e a divulgação de gravação ilegal até o juiz de Brasília que invadiu a competência do STF para determinar buscas e prisões nas dependências do Congresso. Um dos casos mais chocantes foi a autorização do Juiz da Vara da Infância e Juventude do Distrito Federal para a Polícia Militar desocupar uma escola cortando água e luz, proibindo entrada de alimentos e determinando o “uso de instrumentos sonoros contínuos, direcionados ao local da ocupação, para impedir o período de sono”. Ou seja, o juiz autorizou a tortura. Os antigos romanos já se preocupavam com abuso de poder: “Quem guarda os guardas?” (Juvenal, “Sátiras”)

Eis o problema: os direitos assegurados na Constituição estão ameaçados por decisões do governo, do Legislativo e do próprio Judiciário. O STF aboliu a presunção de inocência em votação desempatada pela presidente, ignorando o princípio in dubio pro reo. A PEC do teto de gastos por 20 anos, aprovada no Senado, corta direitos e não prevê nenhuma medida de sacrifício ao “andar de cima”, como taxação de grandes fortunas e herança, reforma tributária progressiva, combate à sonegação etc., a exemplo do que ocorreu em ajustes fiscais de outros países.

É possível combater a corrupção sem suprimir direitos. Cortar direitos não é solução para o equilíbrio de contas, a impunidade ou a lentidão da Justiça. Longe disso, é o caminho que historicamente levou ao Estado policial das tiranias. Este, sim, é o maior dos males que uma democracia deve temer.

 

*Liszt Vieira é professor da PUC-Rio e foi defensor público, e Mariza Cassús é defensora pública

 

 

O globo, n. 30433, 02/12/2016. Opinião, p. 17.