A hipocrisia de criminalizar o aborto

Reis Frede

06/12/2016

 

 

Enquanto cerca de 800 mil mulheres interrompem a gravidez todos os anos, milhares de famílias aguardam nas intermináveis filas de adoção em busca da realização do sonho de ter um filho: este é o retrato de um país insuflado de contradições chamado Brasil.

Ao criminalizar ambas as práticas, o aborto e a adoção direta, o Estado brasileiro, em uma absurda soma de ignorância e autoritarismo, gasta mais de 140 milhões de reais por ano em internações no SUS por conta de complicações médicas decorrentes de abortos clandestinos, ao mesmo tempo em que frustra casais que se dividem entre gastar milhares de reais em clínicas de fertilização humana ou em morosos, burocráticos e mesmo cruéis procedimentos de adoção em que há muito mais candidatos do que crianças aptas para tanto.

É cediço concluir que a construção de uma sociedade que se pretende verdadeiramente democrática não pode simplesmente “criminalizar” um desejo legítimo de não ter filhos, até porque a singela proibição não possui a plena efetividade de evitar a prática, como bem demonstram os assustadores números envolvidos: apenas entre 2004 e 2013, cerca de nove milhões de mulheres interromperam a gestação no Brasil, conforme dados da Organização Pan-Americana de Saúde.

Vale ressaltar que a atual proibição penaliza, sobretudo, a mulher de baixa renda, que realiza o procedimento em condições sanitárias péssimas, colocando, em última análise, sua vida e sua saúde em risco.

A própria Suprema Corte, em inédita e recente decisão, da relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, que tem se notabilizado pelo seu extraordinário amadurecimento humanístico, entendeu que a prática do aborto, até o terceiro mês de gestação, não é crime, a exemplo de praticamente todas as legislações dos países democráticos desenvolvidos — como os EUA, a Alemanha, o Reino Unido, o Canadá, a França, a Itália, a Espanha, a Holanda, a Austrália e Portugal —, na exata medida que viola os direitos fundamentais da mulher, além de afrontar o princípio da proporcionalidade.

Polêmicas à parte, há de se reconhecer que é plenamente possível conciliar o reconhecido direito da mulher de não ter filhos com o imperioso direito à preservação da vida do nascituro, o que jamais será alcançado com a simples criminalização da prática do aborto (a despeito de mais de 70 anos de vigência do artigo 124 do Código Penal).

Destarte, o caminho mais seguro para resolver, em definitivo, a questão do aborto em nosso país passa, necessariamente, por afastar a nefasta ingerência do Estado — com seus permanentes vícios criminalizadores de condutas —, permitindo que casais interessados em ter filhos possam, por meio de instituições e/ou organizações não governamentais, simplesmente “adotar” o nascituro diretamente das mulheres dispostas a abortar, financiando todos os custos envolvidos em uma gravidez, demovendo-as, sem ineficazes ameaças de punição, deste desejo que, no íntimo, não é plenamente verdadeiro, considerando que nenhuma mulher deseja realmente encerrar a vida fetal (ou mesmo embrionária), mas sim apenas exercer o legítimo direito de não ter filhos.

 

*Reis Friede é desembargador federal

 

 

O globo, n. 30437, 06/12/2016. Opinião, p. 15.