Desobediência inédita

Cristiane Jungblut

07/12/2016

 

 

-BRASÍLIA- O presidente do Senado, Renan Calheiros, abriu ontem uma crise institucional com o Supremo Tribunal Federal, ao decidir, com aval da Mesa Diretora que preside, descumprir a decisão tomada na véspera pelo ministro Marco Aurélio Mello afastando-o do comando do Congresso. Diante do impasse, a presidente da Corte, Cármen Lúcia, marcou para hoje a análise da decisão de Marco Aurélio pelo plenário do STF. O Palácio do Planalto, por sua vez, passou o dia tentando demonstrar apoio a Renan, que, mesmo enfraquecido, é a principal liderança política do Senado. No entanto, alguns dos principais interlocutores políticos do governo já costuraram um plano para garantir que até o fim do ano seja aprovada a PEC que limita o crescimento dos gastos públicos, pauta mais importante do governo, mesmo que o Supremo afaste definitivamente o peemedebista, entregando o comando da Casa ao PT. A estratégia é calçada na ampla maioria que o governo detém hoje. Já está no norte dos líderes da base aliada a apresentação de um requerimento para inclusão da PEC na pauta, caso Jorge Viana (PT-AC) seja alçado ao posto de presidente de forma definitiva e se negue a cumprir o acordo de votação da PEC na próxima terça-feira. Esse tipo de requerimento é de votação obrigatória e, caso receba o apoio da maioria dos senadores, obriga que o projeto entre na pauta.

Além disso, para garantir que as etapas burocráticas sejam cumpridas, os senadores da base devem se mobilizar para garantir nos próximos dias o quórum mínimo no plenário para que ocorram três sessões. Se Viana não quiser abrir as sessões, a base governista deve solicitar que o segundo vice-presidente, Romero Jucá (PMDB-RR), que é líder do governo, dê início a elas.

A manobra política de enfrentamento ao Supremo, que aprofundou a crise política, foi orquestrada pelo próprio Renan, em reunião com os senadores da Mesa Diretora. O vice-presidente do Senado, Jorge Viana (PT-AC), participou da solução, assinando o ato da Mesa e indo ao STF conversar com Marco Aurélio, autor da decisão contra Renan. Após se negar na véspera a assinar a notificação do processo, Renan deu ontem novo chá de cadeira no oficial de Justiça que foi ao Senado notificá-lo da decisão e depois voltou a se recusar a assinar o documento.

O ato da Mesa que decidiu “aguardar a deliberação do Pleno do STF” foi divulgado enquanto o oficial de Justiça deixava o gabinete da presidência. Em seguida, Renan falou:

— Tomar uma decisão de afastar um presidente do Senado, o chefe de um Poder, por uma decisão monocrática, a democracia, mesmo no Brasil, não merece esse fim — disse Renan, alegando que o Senado se posicionou pela “separação e independência dos Poderes”.

Renan ainda atacou Marco Aurélio, procurando desqualificar o ministro:

— Como presidente do Senado me obriguei a cumprir liminares piores do ministro Marco Aurélio. Uma delas, a qual fiz questão de cumprir, foi a decisão que impedia que acabássemos com os supersalários no Legislativo. Em outras palavras, toda vez em que ele ouve falar em supersalário, ele parece tremer na alma.

A reunião entre os senadores da Mesa foi feita em uma sala especial — chamada de antigrampo —, e Renan convenceu os colegas de que era preciso resistir e não cumprir a decisão monocrática de Marco Aurélio. A saída fora debatida pela manhã, na residência oficial, em encontro de Renan com o ex-presidente José Sarney, Viana e a senadora Kátia Abreu (PMDB-TO).

Jorge Viana ficou pressionado entre a lealdade a Renan e as reclamações do PT. Ele só assinou o documento depois de uma mudança no texto. A proposta original era mais acintosa ao STF, afirmando que o Senado iria aguardar a deliberação da Corte “anteriormente à tomada de qualquer providência relativa ao cumprimento de decisão monocrática em referência”.

Sem clima, as votações foram suspensas por Viana, e Renan cancelou jantar de confraternização de Natal.

 

“Afastar um presidente do Senado, por uma decisão monocrática, a democracia, mesmo no Brasil, não merece esse fim”

Renan Calheiros

 

OS ARGUMENTOS

ECONOMIA

Decisão do ministro do Supremo Marco Aurélio Mello, afastando Renan Calheiros da presidência da Casa, impacta “gravemente” no funcionamento do Congresso, em atividades como a votação de propostas “urgentes” para melhorar a situação econômica do país.

 

DENÚNCIA DE PECULATO

O acórdão com a aceitação parcial da denúncia de crime de peculato contra Renan ainda não foi publicado, e essa decisão ainda precisa ser confirmada pelo plenário do Supremo.

 

DIREITO DE DEFESA

Nem Renan nem a Mesa do Senado foram notificados a participar do processo em que o STF analisa a proibição de réus ocuparem cargos na linha sucessória da Presidência da República, o que iria contra o direito de defesa e o devido processo legal, previstos na Constituição.

 

INDEPENDÊNCIA DOS PODERES

A Constituição estabelece o princípio da independência e harmonia entre os três Poderes e o direito de o Senado decidir sobre a suspensão de processos criminais contra senadores

 

LINHA SUCESSÓRIA

Não existe previsão atualmente de que Renan suceda ao presidente da República; o pedido de afastamento baseou-se na alegação de que réus não podem ocupar cargos na linha sucessória da Presidência.

 

 

O globo, n. 30438, 07/12/2016. País, p. 03.