Correio braziliense, n. 19545, 29/11/2016. Mundo, p. 12

Havana diz adeus ao Comandante

Milhares de cubanos rendem homenagens a Fidel Castro em memorial na icônica Praça da Revolução. Moradores da ilha relatam ao Correio o clima de comoção. Brasil enviará chanceler e ministro da cultura

Por: RODRIGO CRAVEIRO

 

Os soldados do Batalhão de Cerimônias das Forças Armadas Revolucionárias dispararam 21 salvas de artilharia ao mesmo tempo, em Havana e em Santiago de Cuba, por volta das 9h (meio-dia em Brasília). A multidão já formava uma imensa fila do lado de fora do Memorial José Martí, na Praça da Revolução, palco de atos históricos liderados por Fidel Castro. Na fachada do prédio da Biblioteca Nacional de Cuba, uma gigantesca foto do ex-presidente, nos tempos dos combates em Sierra Maestra. O fuzil às costas, o olhar voltado para o horizonte. Lá dentro, membros da Guarda de Honra estavam perfilados ao lado da mesma foto e de painéis com dezenas de medalhas do ex-presidente cubano. A emoção marcou o primeiro dia de cerimônias de despedida a Fidel. Uma idosa não conteve as lágrimas, enxugou o rosto com um lenço branco e foi abraçada. Em um gesto de incredulidade, um senhor levou a mão esquerda à face e chorou copiosamente. As cinzas do Comandante somente poderão ser vistas pela população a partir de amanhã, quando percorrerão, em procissão, 13 das 15 províncias e serão sepultadas em Santiago de Cuba (veja quadro), a cerca de 890km de Havana.

Funcionária da instituição cultural Casa del Alba, em Havana, Betsy Rojo, 51 anos, se encontrou com amigos na sede do Ministério da Cultura, às 8h de ontem (hora local). De lá, seguiram rumo à Praça da Revolução. “As homenagens estão emocionantes. Na praça, havia muitíssimas pessoas. Demorou bastante para que conseguíssemos entrar no Memorial José Martí. Pude ver um povo muito condoído, que sofre com a perda do Comandante”, relatou ao Correio. “São emoções muito encontradas. Fidel, para todos os cubanos, era um pai. Para aqueles nascidos antes do triunfo, Fidel foi a luz que lhes apareceu. Antes do triunfo revolucionário, havia muita pobreza”, acrescentou. Segundo Betsy, a geração que sucedeu a Revolução Cubana vê o ex-presidente como um guia. “Nós sentimos uma dor muito profunda. Eu sinto que o meu pai maior se foi e que nos falta a mão de um guia. Ao mesmo tempo, temos de crescer e trabalhar duro, a fim de que as conquistas obtidas pela Revolução não desapareçam”, opinou.

Krystell Aspillaga, 20, estudante de jornalismo da Universidad de La Habana, e cerca de 3 mil colegas saíram do câmpus às 10h de ontem e caminharam até a Praça da Revolução. Ela contou à reportagem que, com a ajuda de amigas, carregou uma grande bandeira cubana. “Notar a falta de Fidel é algo verdadeiramente triste para o meu povo. O memorial foi muito emotivo”, afirmou. “Havia muita tristeza, pessoas chorando; muitos jovens. Velhinhos doentes eram ajudados por outras pessoas para subir. Vi uma idosa chegar à praça sem um dos pés, amparada por muletas. Ela chorava. As filas estavam imensas. Havia, sobretudo, muito silêncio.” Questionada sobre o significado de Fidel para a sua vida, Krystell respondeu: “Grandeza; aqui em Cuba, as pessoas batizam cavalos com o nome dele, porque representa, acima de tudo, resistência e poder”. De acordo com a estudante, Fidel tinha uma capacidade de liderança “inquebrantável” e um “grande senso de responsabilidade pelo interesse coletivo”. “Que o problema dos outros nos cause dor; foi o que ele nos ensinou.”

O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, anunciou ontem que não viajará a Havana. O colega russo, Vladimir Putin, alegou agenda apertada para justificar a ausência, e enviou Viacheslav Volodin, líder da Duma do Estado, a Câmara dos Deputados. O governo brasileiro será representado pelos ministros José Serra (Relações Exteriores) e Roberto Freire (Cultura). O rei Juan Carlos, da Espanha, também confirmou presença.

 

Oposição

Em Santiago de Cuba, destino das cinzas de Fidel, Jose Daniel Ferrer Garcia — coordenador da União Patriótica de Cuba (Unpacu) e um dos 75 prisioneiros de consciência — disse ao Correio que a morte de Fidel disparou o consumo de bebidas alcoólicas, principalmente entre os jovens. “O regime proibiu a venda de álcool e isso incomodou algumas pessoas. Eu vi o desenlace de Fidel como um acontecimento lógico. Não me alegro pela morte de ninguém, nem sequer do homem que causou mais danos e sofrimentos à minha pátria. Estou feliz pela morte do sistema que Fidel impôs a nós”, desabafou. “A morte de Fidel, de certa forma, resulta como se um dia morressem, em uma mesma pessoa, os dois primeiros chefes do regime soviético: Vladimir Lênin e Josef Stalin. Por várias razões, entre elas a idade e a saúde, Raúl Castro (irmão de Fidel) permanece como uma combinação de Yuri Andrópov e Konstantin Chernenko (ex-secretários-gerais do Comitê Central do Partido Comunista). Ele se aproxima de um Mikhail Gorbachev”, acrescentou. Para Garcia, um terceiro líder do regime cubano terá de permitir verdadeiras reformas econômicas e políticas, sob pressão popular e da própria conjuntura internacional, levando à democratização da ilha.

 

DEPOIMENTO

“Foi um líder excepcional”

“Pouco a pouco, assim como o fim físico de Fidel, eu me dou conta da perda. Uma parte fundamental do pensamento e da ação pelos direitos coletivos fundamentais à existência humana se vai, embora reste viva por sua imensa força. O seu desejo profundo era, sem dúvida, que novas ideias pelo outro, pelo bem dos povos, surjam e se firmem como realidade.

Não se foi com desalento, mas permanecia rebelde e inconformado. Anima-me supor que seu legado venha a inspirar o rumo. E, ainda que segredos o tenham circundado, soube ser claro e sincero, sempre que Cuba e a humanidade demandaram. Aos que o chamam de ditador brutal, rebato com outra qualificação: líder excepcional.

Que Fidel não reste mito ou totem. Nem descanse, imóvel, em um quadro especial na galeria de personalidades. Que sua vida e sua obra possam ser chama ou semente para quem quer um mundo melhor.”

Claudia Furiati é historiadora carioca e autora de Fidel Castro: uma biografia consentida

 

A despedida

Hoje

Entre 9h (meio-dia em Brasília) e 12h, prosseguirão as homenagens a Fidel Castro no Memorial José Martí, em Havana. Às 19h (hora local), ato multitudinário na Praça da Revolução.

 

Amanhã

As cinzas serão levadas a Santiago de Cuba, onde chegarão no sábado.

 

Sábado

Às 19h, será realizado ato na Praça Antonio Maceo, em Santiago de Cuba.

 

Domingo

Às 7h (10h em Brasília), ocorrerá a cerimônia de inumação das cinzas de Fidel no cemitério de Santa Efigênia, na mesma cidade.