Correio braziliense, n. 19530, 14/11/2016. Opinião, p.9

 

Foro privilegiado: desrespeito à cidadania

Luis Carlos Alcoforado

 

O privilégio sempre esteve presente na formação e na vida nacionais, sob o mascaramento de complexa engrenagem social ou jurídica, quase desconhecido ou despercebido. O mais idealista e utópico dos princípios constitucionais, aquele que consagra, formalmente, a igualdade, sofre constante desintegração do próprio Estado, em ação do legislador, do administrador e do juiz. Desconecta-se da realidade a premissa de que, no Brasil, todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. A Constituição Federal renovou-se para se tornar caduca!

A igualdade não passa de exercício de retórica, principalmente quando a teoria pretende almofadar o desconforto do tratamento desigual e discriminatório, mais diagnosticado e vivido pelo povo do que a práxis e a resposta isonômica que o Estado deveria respeitar, como compromisso do constituinte. O princípio da igualdade ou da isonomia é mero diletantismo acadêmico no corpo do funcionamento das instituições brasileiras. É assertiva a constatação segundo a qual o princípio da igualdade funciona como dopamina na construção de modelo constitucional ideal, mas com insuficiência de dosagem para animar a realidade de suas virtudes. Tudo no Brasil é muito desigual.

Na saúde, na educação, no trabalho, na cultura, na segurança, no capital, na Justiça, em nada que, verdadeiramente, interessa a todos, sem discriminação de qualquer natureza, subsiste a igualdade, quando se descola a questão do plano teórico para o empírico. Há dificuldade para identificar os meios segundo os quais se guarnece a supremacia do princípio da igualdade, numa sociedade habituada a distribuir desigualdade. E mais: uma sociedade que tolera, inclusive formalmente, a desigualdade, a discriminação, o privilégio, em corpo de normas jurídicas, que deveriam estar alinhados com a Constituição Federal.

Para a maioria do povo brasileiro, o direito ao princípio da ampla defesa, à prestação jurisdicional, se inicia no primeiro grau, com juiz singular. No entanto, para uma minoria, o regime jurídico se abre para dialogar com o privilégio, com a discriminação, com a proteção, em flagrante ruptura com o princípio cardeal da igualdade de todos em face da lei. Para uma minoria de cidadãos, se assegura foro especial, sob o fundamento de que conserva status, ainda que temporário ou transitório, funcional, porque faz parte da elite pública, que cumpre papel estatal.

O curioso é que coube à própria Constituição da República castigar o princípio da igualdade de todos, ao segregar os jurisdicionados, em castas privilegiadas e em castas desprivilegiadas. E, sinceramente, a Constituição Federal mostrou-se caridosa em excesso, ao ampliar o rol de pessoas que fazem jus ao foro dos privilegiados. Há duas categorias de cidadania, quando se fala em Justiça. É categórica a premissa de que a Justiça fala línguas diferentes, em rituais que tratam dos que têm poder e dos que não têm poder.

Aos que têm poder, se oferecem tratamentos especiais, em cortes suntuosas, pejadas de ritualismos, que sacrificam a transparência de suas decisões, quando tudo já não se acha alcançado pela morosidade do processamento e do julgamento, para o reconhecimento da extinção da punibilidade, pelo efeito articulado da prescrição. Aos que não têm poder, à falta de status jurídico-político, o direito à prestação jurisdicional se exerce, quando é possível invocá-lo, com as dificuldades e os empecilhos reservados aos que carecem de força na representação de seus legítimos interesses.

O foro especial, por prerrogativa de função, é, a rigor, uma manipulação legal, fruto de interesses que se conjugam e se confundem nas figuras do legislador e do destinatário do privilégio. O destinatário do privilégio é o próprio criador do foro especial, onde se crê esconder o ânimo da impunidade. Logo, se invocados o princípio da eticidade, da moralidade e da legitimidade, o foro privilegiado seria fulminado, não só execrável pelos cidadãos que querem ser tratados com isonomia, mas pela evidência de que há o exercício legislatório em causa própria.

No Brasil de tantos insucessos na construção de uma Justiça imparcial para a cidadania, a melhor solução seria abolir o foro especial, de tal sorte que o cidadão pudesse acreditar que todos se consideram merecedores de tratamento sem discriminação. Ao fim, o poder continua nas mãos de quem se estimula a legislar em causa própria, com repercussão em quem não faz lei, mas a aplica, como blindagem aos erros do constituinte que enganou a todos, inclusive a história.

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» LUIS CARLOS ALCOFORADO

Advogado