O calcanhar de Temer

Merval Pereira

21/12/2016

 

 

A base aliada do governo, sua maior garantia de estabilidade política, mostrou ontem que também é sua maior fraqueza. Contra a orientação do líder do governo, uma maioria esmagadora nascida da união entre aliados governistas e a oposição liderada pelo PT aprovou a renegociação da dívida dos estados sem nenhuma contrapartida.Foram apenas 12 votos fiéis para o governo. Alguém tem dúvida de que o presidente Michel Temer não vetará a medida, que vai de encontro ao programa de recuperação financeira que ele tenta colocar em pé?O próprio presidente da Câmara, Rodrigo Maia, estabeleceu claramente as regras, quase que num desafio ao presidente Michel Temer: votamos o que consideramos ser o melhor para o Brasil. Se o presidente não concordar, ele que vete.O regime de recuperação fiscal suspende por três anos o pagamento da dívida de estados em calamidade fiscal, como Rio de Janeiro e Minas Gerais, entre outros, e as contrapartidas serão determinadas por meio de projeto específico nas assembleias legislativas.O texto que veio do Senado previa que, durante a moratória, os estados ficariam proibidos de conceder reajustes aos servidores, criar cargos, realizar concursos públicos, criar despesa obrigatória de caráter continuado e gastar com publicidade oficial. Medidas bastante razoáveis, que agora serão negociadas em cada Assembleia, geralmente dominadas pela base governista local.Ao defenderem a independência da Câmara em relação ao que desejava o Ministério da Fazenda, os deputados trataram o tema como sendo uma bandeira política, quando o que estava se desenrolando ali no plenário, na véspera do recesso parlamentar, era apenas mais uma manobra de bastidores para defender interesses específicos.

O PT, por exemplo, ficou contra o financiamento de planos de demissões voluntárias, como se com isso estivesse defendendo os empregos. Na verdade, inviabilizando essa alternativa, ele e a eventual maioria estavam na realidade criando mais dificuldades para todos os funcionários públicos, que não recebem seus salários em diversos estados.A questão não está em proteger a independência da Câmara, mas em formarem-se maiorias eventuais para impor o interesse de corporações acima dos interesses nacionais. Quando se tem uma maioria com densidade programática, o governo pode navegar em águas turbulentas com a certeza de que o rumo será mantido.Quando, ao contrário, essa maioria é formada por representantes de grupos de interesses, instala-se um governo dentro do governo, onde todos se tornam dependentes das idiossincrasias dos outros.A busca obsessiva do sonho de ter uma base aliada que barrasse qualquer iniciativa de instalação de CPIs e, no limite, até de um impeachment, levou o ex-presidente Lula ao mensalão e ao petrolão.O que garante não apenas a permanência de Michel Temer na Presidência da República, mas, sobretudo, uma expectativa de poder de mais dois anos pela frente, é a sua formidável base de apoio parlamentar.Uma base que, nas suas origens, guarda os segredos e os complexos movimentos políticos que a ligam da mesma maneira ao mensalão e ao petrolão e colocam em risco o mandato do presidente Temer, em processo em trâmite do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).As revelações da Operação Lava-Jato demonstram a fragilidade da base parlamentar governista, que ao mesmo tempo só pode revelar-se como um instrumento de poder político se aprovar as reformas que o governo anuncia.Mas ontem ficou claro que, pelas próprias características heterodoxas que a formam, essa base de apoio não é totalmente controlável pelo Palácio do Planalto. (...)

 

 

O globo, n. 30452, 21/12/2016. País, p. 04.