O horror, o horror

Natália Lucas e João Carlos Silva

03/01/2017

 

 

Ao menos 56 presos são mortos por rivais em massacre brutal no maior presídio de Manaus

 

Após 17 horas de horror no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, o governo do Amazonas contabilizou o assassinato de 56 presos, mortos na guerra entre facções que se agrava desde o final do ano passado em diferentes estados do país. A unidade onde ocorreu o massacre, a maior do estado, já estava em condições “péssimas” em outubro de 2016, segundo inspeção do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Houve fuga em massa horas antes do massacre. Ontem à noite, a Secretaria de Segurança informava que 184 detentos escaparam em duas unidades do complexo, sendo que 40 haviam sido recapturados.

A ação ficou marcada pela brutalidade das mortes. A maioria foi esquartejada, decapitada e queimada. Os presos filmaram detalhes da matança e distribuíram os vídeos em redes sociais.

O motim teve início na tarde de domingo. A disputa envolveu as facções Família do Norte (FDN), que seria ligada ao Comando Vermelho (CV), e o Primeiro Comando da Capital (PCC), com origem em São Paulo. O massacre é considerado o segundo maior da história do sistema prisional do país, ficando atrás apenas da rebelião conhecida como Massacre do Carandiru, quando 111 detentos foram mortos, em 1992.

O motim começou por volta de 16h de domingo, quando detentos do regime fechado renderam os agentes carcerários e começaram a ocupar os pavilhões do Compaj. A unidade funciona abrigando os regimes semiaberto e fechado. Com capacidade para 592 presos, o complexo está superlotado, abrigando 1.825 detentos.

O juiz titular da Vara de Execução Penal do Tribunal de Justiça do Amazonas, Luís Carlos Valois, que participou das negociações e entrou no presídio, disse que as mortes ocorreram nas primeiras horas de confronto e relatou as cenas de terror no interior da unidade.

— Pilhas de corpos espalhadas pelos corredores, membros esquartejados nos cantos e muitas cabeças decapitadas no local. O chão estava lavado de sangue. Nunca vi nada igual na minha vida, aqueles corpos e o sangue ainda estão nítidos na minha cabeça. Ainda estou em choque. As reivindicações não tinham força. Estavam usando argumentações para ganhar tempo — relatou Valois.

Imagens que circulam nas redes sociais revelam a crueldade. Algumas cenas mostram os presos usando um facão para decapitar suas vítimas. Em outra, os presos enfileiraram as cabeças já decapitadas e apontaram para elas dizendo o nome dos mortos. Segundo a polícia, todos mortos são ligados à facção paulista ou são estupradores.

Foram encontradas quatro pistolas e uma espingarda calibre 12. As imagens mostram que os detentos usaram armas brancas, coletes à prova de bala e uma escopeta. Segundo o titular da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap), Pedro Florêncio, os detentos do semiaberto deram apoio à rebelião:

— Eles receberam o apoio dos presos do regime semiaberto que fizeram um buraco na muralha que divide os dois presídios, e as armas foram repassadas para os detentos do regime fechado.

Especialistas acreditam que o massacre é mais um capítulo da crise profunda no sistema prisional. Hoje já são 25 facções criminosas agindo em unidamil des prisionais.

— Essa rebelião é mais um macabro capítulo da crise que o Brasil enfrenta na segurança pública e no sistema prisional. De um lado, a tensão cresceu com a estratégia de nacionalização adotada pela facção criminosa paulista. De outro, governos estaduais, União e Poder Judiciário estão batendo a cabeça e atuando de forma não integrada — avalia Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

José Vicente da Silva Filho, coronel reformado da Policia Militar paulista e especialista em segurança, afirma que atribuir o massacre apenas à guerra de facções é simplificar o problema.

— O que está causando isso são os 300 presos nos presídios. E temos uma gestão muito ruim em quase todos os estados. Nós temos algumas coisas que funcionam bem no Paraná, São Paulo e em Minas Gerais. Mas tem estados em que as coisas estão indo muito mal.

A inteligência da Secretaria de Segurança Pública investiga ainda o apoio de presos do regime provisório e fechado de outra unidade prisional ao motim. Uma hora antes do início da rebelião no Compaj, por volta de 15h, presos do Instituto Penal Antônio Trindade (Ipat) fugiram por túneis. A suspeita é que a fuga em massa do Ipat tenha sido arquitetada para desviar a atenção da polícia do Compaj. A polícia só teve acesso à unidade prisional por volta das 7h de segunda-feira.

O secretário de Segurança Pública, Sérgio Fontes, afirmou que a unidade não foi invadida para evitar um massacre ainda maior. A entrada só ocorreu após terem sido esgotadas todas as possibilidades de negociação.

— A opção de invasão não foi considerada viável até porque as consequências seriam imprevisíveis.

O acesso ao Compaj foi bloqueado por uma barricada feita pela polícia. Familiares ficaram a quase um quilômetro da entrada do complexo, na BR-174, que liga Manaus a Boa Vista. Cerca de 100 pessoas, a maioria mães e mulheres dos presidiários, pernoitaram próximo à barricada em busca de informações. A entrada e saída de viaturas do Corpo de Bombeiros, do Instituto Médico Legal e de ambulâncias no local durante a madrugada só aumentou o clima de medo e preocupação dos familiares. Tiros eram ouvidos a todo momento.

Ontem, cerca de 130 detentos ligados a facção paulista começaram a ser transferidos para outra unidade, no centro de Manaus. Este presídio havia sido desativado em outubro.

 

OUTROS MASSACRES
 

CARANDIRU.

Em outubro de 1992, 111 presos foram mortos após a Polícia Militar invadir a Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru, para conter uma rebelião. Setenta e quatro policiais chegaram a ser considerados culpados pela morte de 77 das vítimas (os outros 34 teriam sido mortos por outro detentos), mas o julgamento foi anulado em 2016.

BENFICA (RJ) - MAIO DE 2004.

Criminosos atacaram a Casa de Custódia de Benfica, libertando 14 detentos. Os presos que não conseguiram escapar se rebelaram. Trinta presidiários e um agente morreram.

URSO BRANCO (RO) - JANEIRO DE 2002.

Em Porto Velho, 27 presos foram mortos. O conflito começou após uma mudança nas regras, que colocou presos ameaçados de morte em celas convencionais.

PEDRINHAS (MA) - NOVEMBRO DE 2010.

A rebelião no complexo durou 27 horas e acabou com 18 presos mortos. Os detentos reclamavam das condições do presídio e pediam revisões de seus processos.

 

 

O globo, n. 30465, 03/01/2017. País, p. 03.