Doação premiada
Ruben Berta e Thays Lavor
08/01/2017
Família que domina serviços de presídios no Amazonas irrigou campanha de governador
Protagonista de um monopólio na gestão terceirizada de presídios no Amazonas, a família do presidente da Federação do Comércio do Ceará (Fecomércio-CE), Luiz Gastão Bittencourt, usou uma empresa com sede em Fortaleza e sem negócios com o estado do Norte para realizar, em 2014, uma das maiores doações de campanha do atual governador, José Melo (PROS): R$ 1,2 milhão. O repasse foi feito através da Serval Serviços e Limpeza, que tem como administrador Luiz Fernando Monteiro Bittencourt, filho de Gastão. Uma outra firma, a Auxílio Agenciamento de Recursos Humanos, que tem entre os sócios o próprio presidente da Fecomércio-CE e já administrou cadeias do Amazonas, doou mais R$ 300 mil. Procurado por meio de sua assessoria de imprensa, o governador não se pronunciou.
Um levantamento feito pelo GLOBO mostra que, desde 2003, foram criadas ao menos 12 empresas que orbitam em torno da família Bittencourt e tomaram conta do mercado de gestão de cadeias no Amazonas. Somente de 2010 para cá, essas firmas receberam direta ou indiretamente R$ 1,1 bilhão. Na semana passada, o Ministério Público pediu ao Tribunal de Contas do Estado (TCE) que avalie a rescisão dos contratos com a Umannizare — responsável pelo Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj) e pela Unidade do Puraquequara, onde rebeliões terminaram com 60 mortos — e com a RH Multi Serviços. As suspeitas são de superfaturamento, mau uso do dinheiro público, conflito de interesses empresariais e ineficácia da gestão.
O lucrativo mercado da terceirização vem se consolidando nos últimos anos no Amazonas. Para se ter uma ideia, somente a Umanizzare atingiu, no ano passado, o topo em ganhos: R$ 429 milhões. Em 2015, haviam sido R$ 135,6 milhões. Em 2014, R$ 216 milhões. Em 2013, R$ 28,4 milhões. Além do Amazonas, o grupo ligado à família Bittencourt está presente com força no Tocantins, onde é alvo não só de investigações do Ministério Público como da Polícia Federal.
Atualmente, a RH Multi e a Umanizzare dominam a administração terceirizada no Amazonas, tomando conta de seis presídios no estado. Em 2014, também foi criado o Consórcio Pamas, para a gestão e realização de obras em cinco unidades. Os representantes desse consórcio são Luiz Fernando Monteiro Bittencourt e Regina Celi Carvalhaes de Andrade, sócios da RH Multi e da Umanizzare respectivamente.
O quadro atual de empresas envolvidas na gestão dos presídios do Amazonas tem vários elementos que mostram como, na verdade, trata-se de um grande grupo único. Nos contratos assinados com a Secretaria de Administração Penitenciária (Seap-AM), a RH Multi e a Umanizzare usam o mesmo representante legal: Divino Ronny Resende Júnior, que seria de Goiás. Luiz Fernando e Regina Celi dividem diretamente a sociedade de pelo menos uma empresa: a Buon Piatto Alimentação, que foi criada para fornecer, através de subcontratação, comida para presídios administrados pela Umanizzare.
Outro fato que revela a ligação estreita entre os sócios foi a eleição realizada em 2014 para o Sindicato Nacional das Empresas Especializadas na Prestação de Serviços em Presídios e em Unidades Socioeducativas. Em uma das chapas, não só Regina Celi como o próprio Luiz Fernando Bittencourt se apresentavam como representantes da Umanizzare.
Se hoje tem seu filho como principal protagonista, o empresário Luiz Gastão Bittencourt, da Fecomércio-CE, esteve ele próprio mais à frente do negócio de terceirização de gestão de presídios quando o modelo começou a ser adotado no Amazonas. Não há dados precisos disponíveis, mas o vice-presidente do Sindicato dos Servidores Penitenciários do Amazonas (Sinspeam), Antônio Jorge Albuquerque Santiago, lembra que o sistema começou a ser adotado no fim de 2003 após uma rebelião no Compaj, que culminou com a morte de 13 detentos e um agente penitenciário.
— O que aconteceu naquele momento então foi uma primeira contratação emergencial, com dispensa de licitação. Desde então, o que vemos é um mesmo grupo que vai colocando várias empresas que, na verdade, têm sempre os mesmos sócios por trás. Foi criado um grande negócio, que enriqueceu muita gente — diz.
A primeira empresa que teria entrado no mercado do Amazonas seria a Conap (Companhia Nacional de Administração Prisional). Atualmente, segundo o site da Receita Federal, seus sócios são Luiz Gastão Bittencourt e Cesar Marques de Carvalho, outro empresário que também faz parte da diretoria da Fecomércio-CE, como membro suplente. Em 2005, essa firma chegou a ficar responsável também por três presídios no próprio Ceará, mas o modelo foi perdendo força com o passar dos anos. Após a Conap, a Auxílio Agenciamento de Recursos Humanos e Serviços teria sido a empresa a entrar no lucrativo negócio no Amazonas. Ela também pertence a Luiz Gastão e Cesar Marques, além de Eliana Bittencourt, mulher de Gastão.
A Auxílio foi a empresa utilizada para a doação de R$ 300 mil para a campanha do governador José Melo. Ela teria, porém, saído de cena dos presídios do Amazonas após a fuga de mais de 130 presos de uma cadeia que administrava, em 2013. Mais recentemente, entram a RH Multi Serviços e a Umanizzare.
— Tudo é muito nebuloso no sistema prisional do Amazonas. Tivemos a informação de que essas empresas chegaram a ser multadas em milhões de reais por problemas como fugas e rebeliões, mas acreditamos que nenhuma multa tenha sido paga — acrescenta o vice-presidente do Sinspeam, Antônio Santiago.
O próprio modelo de contrato atual assinado pela Seap-AM com a Umanizzare para a gestão de presídios como os dois onde ocorreram as 60 mortes no início do ano prevê uma multa de até 2% do valor total quando a empresa “for responsabilizada pela ocorrência de fugas, rebeliões e motins, sem prejuízo da responsabilidade civil e penal, assegurados o contraditório e a ampla defesa”. A firma vem trocando acusações com as autoridades locais a respeito da responsabilidade sobre o massacre, alegando que fez alertas ao governo sobre a possibilidade de uma tragédia.
A chacina do início do ano também chamou a atenção para os custos do sistema de gestão privada no Amazonas. Pelas apurações do Ministério Público, o estado paga pouco mais de R$ 4,7 mil mensais por preso no Compaj, administrado pela Umanizzare. A título de comparação, no fim do ano passado, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), que também preside o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), afirmou que um detento no país custa, em média, R$ 2,4 mil por mês.
UMANIZZARE: “MELHORES PRÁTICAS DE MERCADO”
O GLOBO entrou em contato com a assessoria de imprensa da Fecomércio-CE para que Luiz Gastão Bittencourt pudesse esclarecer sua relação com as empresas que atuam no sistema prisional do Amazonas, mas a informação passada foi que, desde a segunda-feira passada, ele está afastado da entidade devido a um período de recesso. Segundo um perfil divulgado no site da federação, Gastão, de 53 anos, é empresário do setor de serviços, “atuando em empresas de asseio, conservação, segurança e administração presidiária". No âmbito nacional, é vice-presidente da Confederação Nacional do Comércio (CNC).
Luiz Fernando Bittencourt, filho de Gastão, procurado através da empresa Serval, que doou R$ 1,2 milhão à campanha de José Melo, não foi encontrado. A firma possui atualmente seis contratos com o estado do Ceará: um deles, que termina em outubro de 2017 e tem previsão de R$ 485,3 mil, tem o objetivo de atender serviços em unidades prisionais da Sejus.
A Umanizzare afirmou que é “uma sociedade anônima que segue as melhores práticas de governança de mercado”. A empresa disse ainda que “o modelo societário escolhido visa preservar, pela característica da sua atividade empresarial, a segurança de seus sócios e da sua direção”. (Colaborou Silvia Amorim)
O globo, n. 30470, 08/01/2017. País, p. 03.