O ano não foi delas

Rodrigo Craveiro

11/12/2016

 

 

POLÍTICA INTERNACIONAL » Líderes como Hillary Clinton e Dilma Rousseff amargaram derrotas em 2016, no momento em que inserção da mulher no processo decisório experimenta avanços. Especialistas veem longo caminho a percorrer e alertam sobre o sexismo

 

Em 31 de agosto passado, com a voz embargada, Dilma Rousseff declarou: “Acabam de derrubar a primeira mulher presidenta do Brasil, sem que haja qualquer justificativa constitucional para este impeachment”. Ela denunciou um golpe contra o direito das mulheres. No primeiro ano após não eleger um sucessor, a argentina Cristina Kirchner se viu às voltas com vários problemas na Justiça, os quais minaram seu capital político. Nas eleições regionais de 23 de outubro, a líder de centro-esquerda chilena Michelle Bachelet viu os rivais da direita vencerem na maior parte dos municípios. Dezesseis dias depois, a democrata Hillary Clinton foi surpreendida pela derrota para o republicano Donald Trump, nos Estados Unidos — talvez a notícia mais impactante dos últimos tempos. “Sei que muitos de vocês estão decepcionados pelo resultado das eleições. Eu também estou, mais do que posso expressar”, desabafou a ex-secretária de Estado. Anteontem, foi a vez de a presidente sul-coreana, Park Geun-hye, amargar um impeachment no parlamento, em meio a um escândalo histórico.

Definitivamente, 2016 não foi o ano das mulheres na política internacional. Para a britânica Rainbow Murray, especialista em políticas de gênero da Queen Mary University of London, apesar de o gênero não ter sido o único fator dos contratempos, ele acabou por não ajudar as líderes. “Os problemas que elas enfrentaram são, em parte, reflexos do fato de que existem mais mulheres líderes no mundo. No turbulento clima político global, os governantes de ambos os sexos enfrentaram batalhas. As mulheres são, frequentemente, avaliadas com menor valor e mais negativamente, independentemente de sua performance atual, o que as torna vulneráveis politicamente”, admitiu ao Correio.

Murray reconhece que a inserção da mulher no mundo da política obteve um impulso ascendente. “Mas ainda há um longo caminho a percorrer, e talvez o progresso no futuro não esteja garantido. As cotas de gênero têm sido fundamentais para aumentar e normalizar a presença das mulheres nas posições de poder”, afirmou a estudiosa. Ela aponta a derrota de Hillary Clinton como o maior desastre para o empoderamento feminino e cita três motivos. “O primeiro é que os Estados Unidos são uma nação poderosa; então, as repercussões do resultado serão sentidas em todo o planeta. O segundo está no fato de que Hillary era a melhor candidata, mas o sexismo contra ela e o racismo contra as minorias que Donald Trump alvejava triunfaram sobre a competência, a experiência e o intelecto”, explicou. Por fim, ela acusa Trump de ter expressado pontos de vista misóginos e de ter se vangloriado de agressões sexuais contra mulheres.

 

Paralelos

Diretora do Centro para Mulheres na Política e Políticas Públicas da Universidade de Massachusetts, Ann Bookman explica que as líderes citadas no início do texto enfrentaram obstáculos particulares e desafios devido à história política e às condições socioeconômicas de seus respectivos países. “Há alguns paralelos entre a derrota de Hillary e o impeachment de Dilma Rousseff. Em ambos os casos, essas mulheres ‘jogaram as regras’ e foram bem qualificadas, mas acabaram acusadas de serem corruptas e desonestas. Hillary foi investigada pelo uso de servidor pessoal de e-mail enquanto era secretária de Estado. Eu ouvi dizer que Dilma foi acusada de aceitar suborno e, apesar de os promotores não terem encontrado evidências, o processo continuou. Ambos os ‘escândalos’ poderiam ter sido usados para desacreditar uma candidata bem qualificada nos EUA e uma presidente bem qualificada no Brasil?”, questiona.

Bookman concorda com Murray em relação ao fato de que o sexismo e a misoginia desempenharam um papel na derrota de Clinton. “Não vejo o sexismo como uma espécie de ‘complô’, mas como uma forma sistêmmica de discriminação baseada no gênero, na qual a mente, o trabalho e o corpo das mulheres são subestimados e desvalorizados”, explica. Ela lembra que Hillary foi tachada de “mulher desagradável” durante os debates presidenciais, além de ter sido reiteradamente diminuída e ridicularizada pelos eleitores — “uma evidência da falta de respeito pelas mulheres, profundamente entrincheirada na cultura americana”.

Nas últimas décadas, o número de mulheres em posição de liderança política aumentou de forma significativa. No entanto, a representatividade em várias nações é satisfatória, na medida em que elas formam 51% da população do planeta. Bookman diz que, nos EUA, as mulheres compreendem apenas 18% das congressistas e 25% das legisladoras do estado de Massachusetts. “A derrota de Hillary e o impeachment de Dilma são ambos reveses na batalha pelos direitos e pela representatividade igual. Mas essas mulheres são modelos mais fortes para as mais jovens, e nos dão esperança de que, um dia, haverá números iguais de homens e mulheres em nossos governos, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil”, conclui.

 

Pontos de vista

Por Beverly Kirk

Temas locais decisivos

“Cada uma dessas mulheres — Hillary Clinton, Cristina Kirchner, Michelle Bachelet e Park Geun-hye — enfrentaram situações políticas únicas em seus países. São mulheres que sofreram perdas ou problemas políticos em 2016, mas os assuntos locais em cada país parece ter desempenhado um papel maior em determinar o destino delas perante os eleitores. Por exemplo, o fervor antiestablishment que varreu regiões rurais dos Estados Unidos.”

Gerente do programa Smart Women, Smart Power (“Mulheres Inteligentes, Poder Inteligente”), do Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS, em Washington)

 

Por Rainbow Murray

Theresa May como exceção

“Houve alguns momentos ruins para as mulheres na política, em 2016. No entanto, a história não é totalmente negativa; uma notável história de sucesso é a da nova primeira-ministra do Reino Unido, Theresa May. A chanceler alemã, Angela Merkel, tem resistido à tempestade dos refugiados e anunciou que disputará um quarto mandato. A derrota de Hillary para Donald Trump, nos EUA, foi o revés mais grave entre as políticas.”

Especialista em políticas de gênero na Queen Mary University of London e autora de Cracking the highest glass ceiling: a global comparison of women’s campaigns for Executive office (“Rachando o teto mais alto de vidro: uma comparação global das campanhas das mulheres para o Executivo”)

 

 

Correio braziliense, n. 19557, 11/12/2016. Economia, p.14.