O Estado de São Paulo, n. 44970, 01/12/2016. Política, p. A4
Após votação, força-tarefa ameaça deixar a Lava Jato

 

Marcia Furlan
Daniel Galvão
Daniel Weterman
Julia Lindner
Erich Decat
Isabela Bonfim
 

A aprovação na madrugada de ontem de um pacote anticorrupção com a inclusão de emendas que preveem punições a magistrados, procuradores e promotores por abuso de autoridade provocou forte reação no Judiciário e entre representantes do Ministério Público. Em Curitiba, representantes da força-tarefa ameaçaram abandonar a Operação Lava Jato caso o texto aprovado seja ratificado pelo Senado e sancionado pelo presidente Michel Temer.

O pacote aprovado, bastante modificado em relação à proposta original – as chamadas 10 medidas contra a corrupção, que recebem mais de 2 milhões de assinaturas –, provocou um tiroteio verbal e elevou a tensão entre as cúpulas dos poderes Judiciário e Legislativo.

A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, lamentou, em nota, a aprovação de um “texto que pode contrariar a independência do Poder Judiciário”.

“Já se cassaram magistrados em tempos mais tristes. Podese tentar calar o juiz, mas nunca se conseguiu, nem se conseguirá, calar a Justiça”, afirmou a presidente da Corte.

O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, falou em “retaliação” por parte dos deputados e disse que “as 10 medidas contra a corrupção não existem mais” e o resultado da votação “colocou o País em marcha à ré”. “O Ministério Público Brasileiro não apoia o texto que restou, uma pálida sombra das propostas que nos aproximariam de boas práticas mundiais.” No Congresso, as críticas foram rebatidas também pelos presidentes do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Para Renan, o pacote anticorrupção apresentado pelo Ministério Público Federal estava “fadado” a sofrer modificações.

“Propostas como informante do bem, validação de provas ilícitas e teste de integridade só seriam aceitas em um regime fascista”, afirmou o presidente, que tentou na noite de ontem mesmo votar requerimento de urgência do texto aprovado na Câmara, mas foi derrotado.

Maia disse que a Casa exerceu seu papel institucional.

“Apesar das críticas, o Parlamento mostrou que não abre mão da sua prerrogativa”, disse.

Em uma votação que varou a madrugada de ontem, o plenário da Câmara aprovou o chamado texto-base do projeto, mas diversas modificações foram incluídas.

A primeira delas foi a inclusão no pacote da previsão de punir por crime de abuso de autoridade magistrados, procuradores e promotores. A emenda, que obteve o apoio de 313 deputados, foi vista como uma retaliação por membros da força-tarefa da Lava Jato. Onze alterações no texto original foram aprovadas ontem.

 

‘Intimidação’. Em coletiva de imprensa na Procuradoria da República na capital paranaense, os procuradores que integram a operação afirmaram que os deputados “rasgaram” a proposta e aprovaram o que classificaram como “lei da intimidação”. “Não será possível continuar trabalhando na Lava Jato se a lei da intimidação for aprovada”, afirmou o coordenação da força-tarefa, procurador Deltan Dallagnol.

“A Câmara sinalizou o começo do fim da Lava Jato.” Segundo ele, o texto aprovado pode ser considerado inconstitucional em “vários pontos”.

“Inclusive até o governo anterior, o governo Dilma avançou propostas contra a corrupção muito melhores do que aquelas que foram, entre aspas, ‘aprovadas’ e constituem na verdade propostas completamente desconfiguradas, deformadas, rasgadas e lançadas no lixo.” O procurador Carlos dos Santos Lima também afirmou que haverá renúncia coletiva da equipe se o texto for aprovado, fazendo com que os procuradores voltem às suas atividade habituais.

“Aproveitaram um projeto de combate à corrupção para se proteger, porque nós estamos investigando e descobrindo os fatos.

Nós iríamos chegar muito mais longe do que chegamos hoje”, disse Lima, que atacou o “instinto de preservação” dos deputados.

Houve reação também das entidades dos magistrados e MP. Para o presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Roberto Veloso, a proposta é um “atentado à democracia”. O presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, José Robalinho Cavalcanti, disse que “foi aprovado um texto improvisado de proposta que busca intimidar e deixar a atuação livre e independente das magistraturas nacionais sujeita à vingança privada.

 

REAÇÕES

“ Já se cassaram magistrados em tempos mais tristes. Pode-se tentar calar o juiz, mas nunca se conseguiu, nem se conseguirá, calar a Justiça.”

Cármen Lúcia

PRESIDENTE DO SUPREMO

 

“ As 10 medidas contra a corrupção não existem mais (...) (o resultado da votação) Colocou o País em marcha à ré”.(...) “O Ministério Público não apoia o texto que restou.”

Rodrigo Janot

PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA

 

“ Não será possível continuar trabalhando na Lava Jato se a lei da intimidação for aprovada (...) A Câmara sinalizou o começo do fim da Lava Jato.”

Deltan Dallagnol

COORDENADOR DA FORÇA-TAREFA

 

“ Aproveitaram um projeto de combate à corrupção para se proteger, porque nós estamos investigando e descobrindo os fatos. Iríamos chegar mais longe.”

Carlos dos Santos Lima

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Investigadores comparam texto a ‘beco sem saída’

 

Beatriz Bulla

 

A aprovação do crime de abuso de autoridade para juízes e promotores, incluído na votação da Câmara, é vista como uma forma de intimidação de investigadores.

Isso porque, na prática, a emenda permite punir procuradores por atividades rotineiras, como a decisão de abrir ou não uma investigação.

O “modo e o momento” de aprovar a medida incluída no pacote anticorrupção mostram, segundo integrantes do MP, que o intuito é de retaliação.

Um dos dispositivos que constam na emenda feita ao projeto prevê que comete crime de responsabilidade o promotor ou procurador que “recusar-se à prática de ato que lhe incumba”.

Por outro lado, também comete crime aquele que instaurar um procedimento em desfavor de alguém “sem que existam indícios mínimos” de prática de um delito.

É o que procuradores têm chamado de beco sem saída: ou cometem crime por não agir ou por agir. Segundo integrantes do MP ouvidos, um procurador poderia ser enquadrado por abuso ao decidir não investigar um cidadão por entender que há falta de provas. Por outro lado, se abrir um procedimento com poucas informações preliminares também acabará punido.

O texto tem ainda definições consideradas muito “abertas” e subjetivas, que dão margem para enquadrar qualquer profissional no crime de abuso de autoridade.

É o caso da previsão de procurador que seja “patentemente desidioso” ou que atue com “motivação político-partidária”.

 

Entrevistas. Os procuradores também ficariam impedidos de conceder entrevistas coletivas – como as feitas pela força-tarefa – para comentar e explicar denúncias ou operações feitas. Não poderiam se manifestar sobre casos sob sigilo, como hoje não são, e nem sobre os casos públicos.