Correio braziliense, n. 19574, 28/12/2016. Cidades, p. 17

Níveis críticos ameaçam abastecimento no DF

O reservatório do Descoberto, principal fonte da água que abastece Brasília, registrou volume de 23% ontem, metade do aferido no mesmo período de 2015. População continuará a sentir os efeitos da escassez, já que as medidas de racionamento não têm data para acabar

Por: Flávia Maia

 

O Distrito Federal se tornou o expoente da crise hídrica vivida pelo cerrado brasileiro. Os baixos níveis dos principais reservatórios de abastecimento público preocupam autoridades e a população. O volume atual registrado no Descoberto está em 23,21% — no mesmo período do ano passado, a marcação atingia quase o dobro (44,56%). No de Santa Maria, em 2015, havia 35% a mais de água do que neste dezembro de 2016. 

A situação crítica vai levar o brasiliense a entrar 2017 com medidas de contenção de consumo severas. Não há prazo para o fim da cobrança da taxa extra nas contas de quem gasta mais de 10 mil litros por mês, assim como 15 regiões administrativas continuarão recebendo menos água nas casas das 7h às 19h por causa da redução de pressão nos canos de distribuição. 

 

Desde 2010, a Agência Nacional de Águas (ANA) alerta para a necessidade urgente de um novo manancial para suprir a demanda crescente na capital do país. Enquanto as obras não saem do papel, medidas de emergência tiveram de ser tomadas. Além das medidas anunciadas para os consumidores nas residências e no comércio da capital, novas outorgas de uso estão suspensas e canais agrícolas foram fechados ou tiveram vazão reduzida. O resultado é o aumento das tensões para obter o líquido. São embates entre a cidade e o campo; entre a poluição e o lazer; e entre o abastecimento e a preservação ambiental. 

 

Fonte: ANA - Arte: Lucas Pacífico/CB/DA Press



Segundo levantamento da ANA, boa parte do território do DF está em nível crítico de oferta e demanda de água. A área do Descoberto e as bacias agrícolas de Planaltina, como Pipiripau, Rio Jardim, Rio Preto e Tabatinga, estão entre os locais mais sensíveis. O aumento do consumo, a destruição das nascentes pela impermeabilização do solo, o desmatamento e a poluição, o rebaixamento dos lençóis freáticos e o regime escasso de chuvas contribuem para o cenário pouco esperançoso em 2017.

“Com a crise hídrica de 2016, nós, sociedade e governo, avançamos muito na compreensão do ciclo da água. Mas a recuperação dos reservatórios está mais lenta, por isso teremos um 2017 que também vai demandar cuidados e economia”, acredita Paulo Salles, presidente da Agência Reguladora de Águas do DF (Adasa).


De acordo com Maurício Luduvice, presidente da Companhia de Saneamento Ambiental do DF (Caesb), o consumo vinha em uma curva decrescente desde que as medidas de contenção foram implantadas — a média diária de retirada chegou a cair 15%. No entanto, em dezembro, o gasto voltou a subir, provavelmente em razão do calor e das festas de fim de ano. Na análise do presidente, em 2017 se desenha uma situação preocupante. “Vamos entrar o ano com economia de água. A crise hídrica ainda não está afastada.” 

Ocupação irregular na Cidade Estrutural (DF) - Foto: Gustavo Moreno/CB/D.A.Press. 

Crescimento

Com quase 25% da população vivendo em área irregular e um crescimento populacional de mais 70 mil pessoas por ano, a crise hídrica era uma tragédia anunciada. Somam-se a essa realidade os poucos investimentos feitos ao longo dos anos para diversificar a matriz de captação de água. O principal reservatório da capital federal, a Barragem do Descoberto, tem 42 anos. À época, Brasília contava com pouco mais de 500 mil habitantes. Atualmente, são quase 3 milhões. A última obra de médio porte para captação do recurso foi inaugurada em 2000, há 16 anos, no Pipiripau, em Planaltina. 

Nas últimas décadas, pequenas construções de barragens e de poços foram feitas para socorrer novos conjuntos habitacionais, como o Paranoá Parque, e reforçar o abastecimento em locais com explosão demográfica, como os condomínios de Sobradinho I e II, Fercal e Bairro do Taquari. Os projetos de maior fôlego, propostos pela Caesb, como a captação no Lago Paranoá, sequer têm o recurso disponível, e Corumbá IV caminha a passos lentos desde o anúncio, em 2003. As obras desse sistema ficaram paradas por dois anos e a nova previsão de entrega é 2018. 
 

Esses dois projetos e a captação no córrego Bananal (prevista para novembro de 2017) podem aumentar em 57,8% a produção de água potável. Hoje, a capacidade máxima diária é de 9,5 mil litros por segundo. Os três sistemas acrescentarão mais 5,5 mil litros à vazão por dia. Esse incremento pode garantir a segurança hídrica até 2050, segundo a Caesb. “Desde 2010 havia apontamentos da necessidade da construção de novo manancial até 2015, isso seria resolvido com o Paranoá ou Corumbá, mas nenhuma das opções foi colocada em prática ainda”, observa Marcela Ayub Brasil, especialista em recursos hídricos da ANA. 

 

Produtor Armindo de Souza mora em uma chácara próximo ao rio Descoberto - Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. 

O produtor rural Armindo de Souza Santos, 62 anos, mora em uma chácara de três hectares às margens do Descoberto há mais de 20 anos e precisou investir em culturas que exigem menos irrigação, como o quiabo. Ele comenta que a seca na região é visível. 
 

“Quando cheguei aqui, as águas minavam no meio da estrada. Dava raiva passar com o carro e ele atolar. Hoje, a praia que forma no Descoberto está cada dia mais longe e a gente torce para chover”, conta o agricultor.

Para saber mais

A Adasa foi criada em 2004. Antes dessa data, as atribuições relativas à água ficavam a cargo da Caesb e da Secretaria do Meio Ambiente. Entretanto, a agência e a pasta costumam divergir quando o tema é água, o que atrapalha a gestão e o andamento de projetos dessa área no DF. É o caso do barramento para irrigação. Outro exemplo é a limpeza de assoreamento do Lago Paranoá causado pelo Noroeste. A Adasa autorizou a retirada da parte assoreada pela Terracap, mas a secretaria entendeu que a ação poderia poluir mais o lago. 

O conflito entre os órgãos ganhou força com a aprovação da lei da deputada distrital Luzia de Paula que retira funções da Adasa e as transfere à Secretaria do Meio Ambiente, entre elas o controle das águas subterrâneas, o que compreende outorgas, cadastramento de poços e monitoramento da quantidade e da qualidade. A assessoria da deputada informou, no entanto, que ela pretende apresentar outro projeto para a área que revogue a lei aprovada na Câmara Legislativa do DF. 

 

 

Irregularidades agravam a situação

 

Foto:Gustavo Moreno/CB/D.A Press. Poluição no Rio Melchior pode chegar ao lago Corumbá

A captação irregular da água, os resíduos clandestinos e a poluição viraram um grave problema no DF. Rios como o Melchior, em Samambaia, já estão na classificação vermelha do Conselho Nacional do Meio Ambiente — é como se o rio estivesse morto, uma vez que a recuperação dele tem custo muito alto. A preocupação de especialistas é com o fato de esse rio desaguar no lago de Corumbá IV, futuro local de captação para consumo humano. No entanto, Paulo Salles, presidente da Adasa, é enfático ao afirmar que a poluição do Melchior não vai contaminar as águas de Corumbá.

 

“O rio tem uma capacidade de depuração. À medida que ele chega próximo à Corumbá, a sujeira vai sendo decomposta ou diluída, porque outras fontes vão alimentando o curso d’água. Não há com o que se preocupar”, garante Salles.


O que de fato incomoda a agência são as irregularidades no sistema: os poços e as fossas clandestinas, assim como o despejo de resíduos poluentes em córregos, rios e até no Lago Paranoá. “A perfuração ilegal de poços nos preocupa muito, porque as pessoas abrem poços em três, quatro horas e as empresas fazem no fim de semana, quando a fiscalização é menor”, diz Paulo Salles. A Caesb estima que haja 28 mil ligações clandestinas em todo o DF, causando um prejuízo de mais de R$ 17 milhões anuais à estatal. “Muito da nossa perda, hoje em 37%, é por roubo de água. Isso prejudica todo o sistema. Nossa expectativa é reduzir essa perda diária para apenas 20%”, comenta Maurício Luduvice, presidente da companhia.