Título: Crise de alto risco
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 27/11/2011, Mundo, p. 24

Mudança de regime na Síria pode acirrar tensões no Oriente Médio. Analistas apontam as prováveis transformações políticas na região

Foto em chamas do ditador sírio, Bashar Al-Assad, durante manifestação na Turquia: protestos similares varreram o mundo árabe nos últimos dias

Com 22,5 milhões de habitantes e a 67ª economia mundial — o Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 107,4 bilhões —, a Síria faz fronteira com Turquia, Iraque, Jordânia, Líbano e Israel. A sobrevivência política em uma região tão volátil exige relações intrincadas com atores de interesses conflitantes. Ciente do impacto que a possível queda do presidente Bashar Al-Assad teria sobre o Oriente Médio, a comunidade internacional tenta resolver a crise por meio do diálogo, além de preservar o regime. O novo prazo dado pela Liga Árabe para Damasco pôr fim à repressão, que já matou 3,5 mil pessoas, terminou na manhã de sexta-feira. O governo de Al-Assad insiste que seu colapso pode representar uma ameaça à tênue paz entre a Síria e outras nações.

Para Louis A.Delvoie — ex-embaixador do Canadá na Argélia e especialista do Centro para a Política Internacional e de Defesa da Queen"s University (em Kingston, Canadá) —, a queda do regime provocará instabilidade em várias frentes. "As ligações da Síria com a milícia xiita libanesa Hezbollah e o movimento fundamentalista palestino Hamas podem sofrer danos, o que abalaria ambas as organizações", alerta. Em junho de 1967, Israel capturou as Colinas do Golã, no sul do território sírio, e construiu 41 assentamentos judaicos.

Sem o tácito apoio de Damasco às organizações anti-israelenses, o Delvoie prevê um endurecimento das relações do Irã com o sucessor de Al-Assad. Uma jogada capaz de surtir efeitos contraproducentes. "O Irã perderia seu único aliado no mundo árabe e isso poderia levar a uma confrontação mais direta de Teerã com outras nações da região, como a Arábia Saudita e o Iraque", comenta o diplomata. A convulsão política também afetaria diretamente a Turquia. Delvoie explica que o regime sírio atua como elemento arrefecedor das inspirações separatistas dos curdos. "Com a mudança em Damasco, os curdos na Síria podem se ligar aos rebeldes no sudeste da Turquia, o que seria ameaçador para Ancara", admite.

De acordo com ele, Israel também se veria com problemas: as relações de Al-Assad com o governo judaico primam pelo senso de realismo. Damasco se abstém de atacar o país vizinho, apesar da ocupação no Golã. Caso a Irmandade Muçulmana ou uma facção da Universidade Árabe Internacional ascenda ao poder, existe a possibilidade de essa política ser revisada.

Sem garantias A iraniana Farideh Farhi, cientista política da Universidade do Havaí, adverte que a intensificação da crise síria aumentará a possibilidade de que a violência se espalhe para países envolvidos no apoio ou na oposição a Al-Assad. Mas a renúncia do ditador não seria garantia de estabilidade em Damasco. "A situação conflituosa pode prosseguir, em detrimento do povo sírio. Isso porque outros atores regionais acham melhor uma Síria completamente envolta em problemas internos do que uma Síria dividida, com elementos sectários disputando o poder ou buscando a vingança", observa. As autoridades sírias temem perder o controle do país para os opositores, caso desmobilizem as forças de segurança e suspendam a repressão.

Farideh acredita que o isolamento do governo sírio, por parte da Liga Árabe, e a pressão pela implementação do plano da organização para pavimentar a transição ao poder são as opções mais construtivas para Damasco. "A esperança é de que as pressões externas, particularmente as econômicas e diplomáticas, empurrem o regime sírio a algum compromisso interno", comenta. Após Damasco ignorar o ultimato da Liga Árabe, tal cenário parece improvável. "Infelizmente, nesse momento o governo de Al-Assad parece intensificar o espectro de uma guerra civil em larga escala", acrescenta.

A especialista iraniana não vê o risco de um desastre estratégico para o Irã. Segundo ela, as relações entre Damasco e Teerã eram muito mais importantes na década de 1980. "Não há dúvidas de que os atores linha-dura dentro do Irã reduziram a importância da Síria. A queda de Al-Assad colocará em xeque a postura agressiva da política externa do presidente Mahmud Ahmadinejad e poderá ter implicações ao balanço de poder dentro do Irã", admite. "No entanto, Farideh analisa a instabilidade síria como um motivo de preocupação maior para outras nações.

Há quem tenha uma visão menos catastrófica para o Oriente Médio. O libanês Nadim Shehadi, analista do Instituto Real de Assuntos Internacionais da Chattam House (em Londres), afirma que as relações entre todos os vizinhos da Síria são entremeadas pela tensão. "Mas haverá uma oportunidade, após a queda do regime de Al-Assad, para reparar os laços entre a Síria e o Líbano", comenta. O especialista discorda de Delvoie e lembra que o próprio Hamas tem se distanciado do regime de Al-Assad e aberto escritórios em outros países da região.

Para Shehadi, nenhuma nação está imune aos ventos de mudança que varrem o Oriente Médio, a chamada Primavera Árabe. Ele prevê que os países que não se curvarem "se quebrarão". "Governos rígidos e avessos a reformas parecerão fortes até seu colapso. Por sua vez, aqueles que possuem um mecanismo interno para transformações políticas sofrerão adaptações", acredita. Ele cita o Líbano e o Iraque como os países mais estáveis do mundo árabe.

Sanções adotadas O Conselho Econômico da Liga Árabe sugeriu, ontem, sanções econômicas à Síria como forma de punir o presidente Bashar Al-Assad por ter ignorado o pedido do grupo para que cessasse a repressão aos manifestantes e permitisse a entrada no país de uma comissão de observadores. Entre as medidas a serem adotadas estão a suspensão de voos comerciais para o território sírio e a suspensão de transações bancárias. Antes de a decisão ser tomada, o ministro de Relações Exteriores sírio, Walid Muallem, enviou uma carta à liga acusando-a de "internacionalizar" a crise síria, ao levar a discussão à ONU.

Vizinhos em alerta Como os países próximos à Síria perdem com a instabilidade política em Damasco:

Turquia O governo de Al-Assad é um importante fator de contenção dos curdos, que sonham em estabelecer um país independente em uma área que compreende a Turquia, a Síria, o Iraque e o Irã. Com um novo regime, os rebeldes separatistas podem recrudescer sua luta.

Israel Sob ocupação israelense desde a Guerra dos Seis Dias, em 1967, a região síria das Colinas do Golã sempre foi motivo de tensão entre os dois países. Sem Bashar Al-Assad no poder, e com um governo fundamentalista islâmico, cresce o risco de uma guerra.

Líbano Entre 1976 e 2005, tropas sírias ocuparam o país. Apesar da retirada, as relações entre as nações são difíceis. Apoiada por Damasco, a milícia xiita Hezbollah promete ficar ao lado de Al-Assad. A Síria ameaça plantar minas na fronteira, para evitar a fuga de refugiados.

Irã Com as Colinas do Golã ocupadas por Israel, a Síria é um feroz aliado de Teerã no discurso contra o Estado judeu. Uma mudança de regime em Damasco pode colocar iranianos e sírios em risco de confronto militar, dependendo da inclinação do novo governo em relação aos israelenses.

Mito "A sobrevivência do regime sírio depende da disseminação da crença de que ele é indispensável e insubstituível. E que, além dele, existe caos, instabilidade e um cenário semelhante ao visto no Iraque e no Afeganistão. Com a queda do regime, isso tudo se mostrará um mito. Enquanto acreditarmos nesse mito, o governo de Bashar Al-Assad permanecerá forte"

» Nadim Shehadi, libanês, analista do Instituto Real de Assuntos Internacionais da Chattam House (em Londres)

Caos "É verdade que há forças na região que gostariam de derrubar o regime de Bashar Al-Assad, mas a resposta do governo aos protestos e a crescente natureza sectária do conflito têm despertado temores sobre a disseminação de caos no mundo árabe. Um novo panorama está sendo traçado no Oriente Médio, e todos tentam se ajustar a essas medidas. Alguns por meio da intransigência, outros pela adaptação"

» Farideh Farhi, iraniana, cientista política da Universidade do Havaí