Correio braziliense, n. 19576, 30/12/2016. Brasil, p. 4

A busca por direitos.

Gabriela Vinhal

As pessoas transgêneras no Brasil se ressentem da falta de uma legislação que lhes garanta direitos básicos. Das iniciativas nacionais, só constam um decreto federal que autoriza o uso do nome social em certas circunstâncias e uma portaria que determina a oferta, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), do processo transexualizador (conjunto de procedimentos para adequar o corpo à identidade de gênero).

Embora essas decisões sejam válidas para todo o país, elas são vistas como “frágeis” por não terem força de lei, o que torna mais fácil sua extinção. No âmbito estadual e municipal, há outras iniciativas, mas a maioria, salvo raras exceções, não atende as principais demandas da comunidade LGBT (leia abaixo).

Enquanto isso, as principais bandeiras dos movimentos trans enfrentam resistência no Congresso. É o que ocorre com a proposta de criminalização da LGBTfobia, ou seja, de atos de discriminação quanto à orientação sexual ou à identidade de gênero. Essa medida, ao lado de penas mais duras para agressões motivadas por intolerância, é vista como um dos fatores que pode reduzir o alto índice de homicídios de travestis e transexuais no país. Como mostrou a reportagem que abriu esta série, o Brasil lidera o ranking mundial desse tipo de crime, com pelo menos uma pessoa trans morta a cada três dias.

 

Arquivado
Um projeto de lei sobre o tema, de autoria da ex-deputada Iara Bernardi, chegou a ser aprovado na Câmara em 2006, mas, depois de chegar ao Senado, foi adiado e acabou arquivado, em 2014. Agora, o PL 2.138/2015, de autoria da deputada Erika Kokay (PT-DF), tenta novamente criminalizar a LGBTfobia, propondo uma alteração na lei que pune o racismo.

Erika, porém, diz que é difícil fazer o texto avançar, principalmente devido à atuação da bancada evangélica, que hoje reúne mais de 90 congressistas. “Mas é preciso resistir”, defende a deputada. Procurado pelo Correio, o presidente da Frente Parlamentar Evangélica, João Campos (PRB-GO), não respondeu.

A deputada do Distrito Federal é também a autora, ao lado de Jean Wyllys (PSOL-RJ), do PL nº 5002/2013, que busca facilitar a obtenção de novos documentos pelas pessoas trans. O texto, porém, permanece à espera de análise pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM). Estão na fila ainda iniciativas como a que institui asilos e casas de repouso para idosos LGBTs e a que deixa explícito que a Lei Maria da Penha também vale para mulheres transexuais e travestis.

 

Na Justiça
Na prática, essa última medida já vale no país, mas apenas devido a uma decisão do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais, que instruiu juristas a estender a aplicação da lei que coíbe a violência doméstica para as mulheres transgêneras. Esse fato é um exemplo de como, na ausência de leis protetoras, a população trans busca abrigo no Poder Judiciário.

É o caso da troca do nome e do gênero na identidade civil. Hoje, para conseguir documentos adequados ao seu perfil, as pessoas trans precisam recorrer à Justiça, enfrentando um longo e burocrático processo. Que o diga a pernambucana Robeyoncé Lima, 28 anos, que desde janeiro aguarda decisão sobre sua demanda.

Depois de se formar em direito, Rob, como é chamada pelos amigos, se tornou a primeira advogada transgênera a passar no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em seu estado. Graças ao decreto federal, pôde fazer a prova usando seu nome social, mas não sabe se conseguirá estampá-lo em sua carteira.

“Eu não sei com qual nome ela virá, porque ainda não ganhei o processo de troca do nome civil. Então, deve vir com meu nome de registro, e não com o qual me reconheço”, diz. A mesma dúvida permanece sobre como será chamada no diploma universitário. “É constrangedor e triste viver com essas incertezas. Em todas as situações que o documento é exigido, começo a me preparar para o pior. Matamos um leão a cada dia”, desabafa.

 

Comprovação
Para o processo, Rob precisou reunir uma série de documentos, incluindo um laudo assinado por psiquiatra e psicólogo e reportagens de jornais e revistas para comprovar que é reconhecida por seu nome social. O Ministério Público deu parecer favorável ao pedido, que ainda precisa ser julgado.

Segundo o advogado Mario Solimene Filho, especialista em causas homoafetivas e LGBT, é a falta de uma legislação sobre o assunto que torna o processo demorado. No caso de mulheres transexuais, além de toda a burocracia, é preciso comprovar a mudança de sexo por meio de cirurgia.

Para as trans que se sentem confortáveis com o órgão genital com o qual nasceram e não querem operar, como é o caso de Rob, cabe ao juiz, com uma equipe de psiquiatras, analisar a troca do nome nos registros. A jurisprudência, segundo Solimene, é menos exigente com os homens trans, porque o processo transexualizador masculino ainda é recente no país.

O projeto de lei que aguarda análise na Câmara prevê que não serão mais exigidos para a troca do prenome “intervenção cirúrgica de transexualização total ou parcial, terapias hormonais, qualquer outro tipo de tratamento ou diagnóstico psicológico ou médico e autorização judicial”.

De acordo com o advogado, o motivo para tanta burocracia é a dúvida se a mudança do nome civil é relacionada à busca pela identidade ou para tentar fraudar dívidas. “Mas, sempre que a questão envolve trans, são impostos muitos condicionantes”, critica.

 

Uso assegurado
O decreto, assinado pela ex-presidente Dilma Rousseff em 28 de abril deste ano, estabelece que a identidade de gênero de travestis e transexuais deve ser respeitada, dando-lhes o direito de usar o nome social no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Com isso, transgêneros passaram a ter o nome respeitado, por exemplo, ao trabalharem em órgão públicos e realizarem provas como o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

 

“Em todas as situações que o documento é exigido, começo a me preparar para o pior. Matamos um leão a cada dia”
Robeyoncé Lima, que desde janeiro tenta incluir o nome social na carteira de identidade