O Estado de São Paulo, n. 45027, 27/01/2016. Política, p. A6
Oceano de ‘eficiência’
Eliane Cantanhêde
Não se trata de ironia do destino, mas de uma coincidência dramática: enquanto a Polícia Federal procurava Eike Batista por mais um esquema criminoso do ex-governador Sérgio Cabral, o atual governador Luiz Fernando Pezão assinava em Brasília os termos do socorro federal para o falido Rio, onde funcionários estão sem salários e cidadãos e empresas serão chamados a contribuir com mais impostos. Cabral rouba, o Tesouro cobre e, no fim das contas, pessoas físicas e jurídicas pagam a conta.
A força-tarefa da operação “Eficiência” definiu o patrimônio ilícito de Cabral como um “oceano”, mas o Estado virou um mar de lama, os fluminenses vivem num mar de lágrimas e, se há alguma ironia nessa história, é que justamente o vice de Cabral, depois seu sucessor, é quem bate de porta em porta em Brasília para segurar a onda em que o Rio se afoga.
As metáforas não são por acaso, já que o verdadeiro Cabral começou a emergir na mídia quando ele se tornou proprietário de uma casa de praia espetacular em Mangaratiba (RJ). Depois, como governador, desfrutava de lanchas caríssimas, vinhos próprios de milionários, jatinhos de empresários e festanças com guardanapos na cabeça em Paris. Tudo com dinheiro alheio, fruto do suor da sociedade.
Além de arrojado, Cabral era também um político prestigiado antes de ir parar em Bangu 8. Foi do PSDB quando convinha, pulou para o PMDB em boa hora, alegou a importância da relação do governo do Estado com o governo federal para estreitar os laços entre ele, governador, e o então presidente Lula e fazia um carnaval com o dinheiro que saltava como confete de esquemas com empresários como Eike Batista e Fernando Cavendish. Chegou a ser cotado para vice e até para candidato à Presidência da República.
Lula percebeu rapidamente toda essa potencialidade. Ficou íntimo de Cabral e foi um bom camarada para Eike. Dinheiro federal para o Rio não faltava, e o grupo X foi um dos “campeões nacionais” na era em que o BNDES era o pai dos ricos. Lula era amigo de Cabral, que era amigo de Eike, que era amigo de Lula. O assalto à Petrobrás foi nessa época, quando Lula também dizia que precisava botar a Vale do Rio Doce “na linha”, destacando para ela alguém com visão “nacionalista” e ação “desenvolvimentista”. Não fosse a resistência de Roger Agnelli (morto depois em acidente aéreo), a Vale poderia ter sido uma segunda Petrobrás...
Cabral teve também muita sorte com um “boom” inédito dos royalties do petróleo e soube capitalizar politicamente. Surfou no PAC Social das maiores favelas cariocas, lançou um forte programa para idosos e, no ano da reeleição de sua candidata Dilma Rousseff, levou os funcionários públicos ao paraíso, com 48 planos de carreiras e salários. O céu era o limite para o Rio, Cabral e suas falcatruas.
E onde fica o PMDB? O PMDB é uma federação nacional e um arquipélago no Rio. No País, há os esquemas – ops!, grupos – de Jader Barbalho no Pará, de Geddel Vieira Lima na Bahia, da família Newton Cardoso em Minas, do agora morto governador Orestes Quércia em São Paulo... E, no Rio, há os esquemas – ops!, as ilhas – de Cabral, Eduardo Cunha, Jorge Picciani e Antony Garotinho (que se mudou para o PR). Essas ilhas não se comunicam e os esquemas são distintos – ou concorrentes? Tudo isso é assustador e desanimador, mas não se desanime. O Brasil recuou três degraus no ranking da Transparência Internacional sobre a percepção da corrupção e, hoje, está em 79.º lugar entre 176 países.
Num primeiro olhar, é o País mais corrupto das galáxias. Melhorando o foco, é o único que está remexendo as entranhas da corrupção, não só com a Lava Jato, mas com seus filhotes. A operação “Eficiência” é um ótimo exemplo disso.
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Um “oceano” ainda não completamente mapeado. Foi assim que os procuradores da força-tarefa da Operação Lava Jato no Rio definiram o patrimônio da suposta organização criminosa chefiada pelo ex-governador Sérgio Cabral (PMDB) entre 2007 e 2014. Até aqui é possível atestar que circularam pela organização pelo menos R$ 366 milhões. Essa quantia, porém, representa apenas parte do que foi desviado dos cofres públicos.
O montante enviado para contas no exterior foi identificado a partir da colaboração premiada de dois operadores do dinheiro, os irmãos Renato e Marcelo Chebar. Foram mapeados no exterior US$ 101,465 milhões e ¤ 1 milhão em diamantes – que estão na Suíça e ainda não foram repatriados –, de acordo com o procurador Sergio Pinel, membro da força-tarefa.
Também entram nessa conta outros R$ 39,7 milhões gastos pelos membros da quadrilha entre 1.º de agosto de 2014 e 10 de junho de 2015, segundo uma planilha fornecida pelos colaboradores. É uma média de aproximadamente R$ 4 milhões por mês em despesas pessoais, como viagens e restaurantes.
As fases anteriores da Operação Calicute, desdobramento da Lava Jato no Rio, apontaram que o grupo ligado a Cabral teria recebido propinas de empreiteiras, desviando cerca de R$ 220 milhões de obras como a reforma do Maracanã e o PAC. Mas ainda não é possível dizer exatamente para onde foi todo esse dinheiro. Parte dele pode ter sido expatriada e entra nos US$ 100 milhões carimbados na nova fase da operação, mas isso não ficou comprovado.
Em uma ação inédita, R$ 270 milhões foram recuperados pelo Ministério Público Federal e a Polícia Federal e já estão no País. Segundo Pinel, em princípio, esses recursos devem ficar depositados em uma conta judicial até o trânsito em julgado das ações contra Cabral e companhia. Nada impede, entretanto, que o Estado do Rio e a União, partes que teriam sido lesadas no esquema, pleiteiem esses recursos. Nesse caso, o pedido teria que ser analisado pelos procuradores e pela Justiça.
Esquema. Cabral recorria a um complexo esquema de contas no exterior para ocultar o dinheiro ilegal. A acusação aponta uma lista de nove contas bancárias, onde o dinheiro das propinas seria depositado, em instituições bancárias na Suíça, Luxemburgo, Bahamas, Uruguai e Andorra. Cabral também teria tido uma conta no Israel Discount Bank of New York, afirmam os procuradores. O esquema teria começado quando o ex-governador ainda era deputado estadual no Rio, cuja Assembleia Legislativa presidiu.
A existência das contas foi revelada pelo colaborador Renato Hasson Chebar, que é operador do mercado financeiro. Em depoimento, ele contou que, por volta de 2002/2003, o deputado, que já o conhecia, o procurou, assustado com o escândalo do Propinoduto (recebimento de propinas por fiscais de impostos do Estado, que tinham contas ilegais no exterior). Cabral não estaria envolvido nesses desvios, segundo o colaborador, mas manifestou preocupação com a conta no Israel Discount Bank. No encontro, que teria sido testemunhado por Sérgio Castro de Oliveira (conhecido como Serjão ou Big), Cabral perguntou se Chebar poderia receber em contas suas o dinheiro que tinha depositado na conta “Eficiência”.
Segundo a denúncia, “o colaborador concordou, tendo os valores sido transferidos para duas contas de sua titularidade de nome “Siver Fleet” e “Alpine Grey”. Após a transferência, essas duas contas passaram a ser alimentadas por operações de dólar-cabo, feitas por Serjão ou Big com Renato e o irmão Marcelo Hasson Chebar. O dinheiro ilegal era entregue em reais para que os valores correspondentes em dólar fossem creditados para Cabral. Essas operações acumularam US$ 6 milhões entre 2002 e 2007.
“A movimentação dos recursos não se deu apenas por meio das contas acima mencionadas.”, prossegue a denúncia. “Após o Israel Discount Bank de Nova York (IDB/NY) ter sido vendido, a nova administração expurgou operadores do mercado ilegal de câmbio, tendo os colaboradores migrado os recursos para diversas outras contas em paraísos fiscais, tais como: 1) Orly Trading junto ao HSBC em Genebra; 2) Hustar/ Bendigo junto ao Hapoalim Bank em Luxemburgo; 3) White Pearl junto ao BSI Bank em Genebra; 4) Winchester junto ao BSI BANK em Genebra; 5) Black Pearl junto ao BSI Bank em Bahamas; 6) Arcadia Associados junto ao Winterbotham no Uruguay; 7) Candance Inc. junto ao BPA Bank em Andorra; 8) Andrews Development S.A., junto ao BSI Bank em Bahamas; 9) Clawson Enterprises, junto ao banco BSI Bank Bahamas (...).” Em 2007, a partir da posse de Cabral no governo do Rio, Serjão teria sido substituído por Carlos Miranda. O procedimento, segundo os procuradores, era o mesmo, mas o volume de dinheiro aumentou. Isso tornou impossível encontrar pessoas para as operações de dólarcabo.
Por isso, o grupo teria passado a usar os serviços de um doleiro conhecido como Juca ou Juca Bala, que tinha estrutura maior para as operações. Renato disse que prestava contas a Cabral, em média, quatro vezes ao ano, sempre no apartamento do ex-governador, no Leblon.
REPASSE
Esquema de corrupção de US$ 100 milhões é atribuído ao ex-governador Sérgio Cabral; parte do montante teria envolvido a compra de ações para ‘lavar’ os recursos
O caminho do dinheiro
1. Eike Batista
Para dar aparência legal ao repasse a Cabral, uma holding de Eike fez um contrato fictício de compra e venda de uma mina
2. Panamá
Repasse ao ex-governador passou pela conta Golden Rock, no Tag Bank, no Panamá. De lá, valor foi remetido ao Uruguai
3. Uruguai
Os valores destinados a Cabral seguiram para uma conta do banco Winterbotham, sediado no Uruguai
4. Sérgio Cabral
Segundo delatores, por indicação de Cabral, foram adquiridas ações na Bolsa de NY que pertenceriam ao peemedebista
Os US$ 16,5 milhões que o empresário Eike Batista repassou ao ex-governador do Rio Sérgio Cabral, supostamente a título de propina, foram pagos em ações da Vale, da Petrobrás e da Ambev, segundo procuradores, como tentativa de “lavar” o repasse
‘Oceano’
“O patrimônio dos membros da organização criminosa chefiada pelo senhor Sérgio Cabral é um oceano ainda não completamente mapeado (...) Eu diria que esses US$ 100 milhões é algo além do inimaginável.”
Leonardo Cardoso de Freitas
PROCURADOR DA REPÚBLICA, QUE INTEGRA A FORÇA-TAREFA DA OPERAÇÃO EFICIÊNCIA
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Preso desde novembro do ano passado e alvo de mais uma investigação relacionada à Operação Lava Jato, o ex-governador do Rio Sérgio Cabral (PMDB) quer fazer acordo de delação premiada. A intenção de colaborar e negociar uma pena menor em eventual condenação foi repassada a aliados próximos.
Cabral foi preso no ano passado durante a Operação Calicute, suspeito de receber mesadas de até R$ 850 mil das empreiteiras Andrade Gutierrez e Carioca Engenharia.
Um dos motivos que o levaram a cogitar a delação premiada, segundo aliados, é o ambiente hostil no presídio de Bangu 8, na zona oeste do Rio, onde cumpre prisão preventiva.
Cabral, dizem interlocutores do peemedebista, admite ter reduzidas chances de se livrar da prisão pelos caminhos tradicionais – via habeas corpus – por causa da quantidade de provas contra ele reunidas pela Procuradoria da República e pela Polícia Federal. Ele tem contra si três mandados de prisão, dois expedidos pelo juiz Marcelo Bretas, do Rio – nas operações Calicute e Eficiência –, e um pelo juiz Sérgio Moro, responsável pela Lava Jato em Curitiba.
No acordo de delação premiada, Cabral ainda pode tentar negociar responder as ações penais em liberdade. Benefícios que poderiam também ser estendidos à sua mulher, Adriana Ancelmo, também presa na Operação Calicute. Em dezembro, Moro aceitou a denúncia contra o ex-governador, a mulher dele e mais cinco. Eles se tornaram réus na Lava Jato.
Operação Eficiência. Ao apontar as ramificações internacionais de um suposto esquema de lavagem de dinheiro criado para escoar os valores desviados de obras no Rio, a Operação Eficiência pode ter acelerado a busca de Cabral por um acordo.
O ex-governador peemedebista vinha conversando com seus advogados sobre a possibilidade e havia fechado a troca do atual defensor, Ary Bergher, pelo criminalista Sérgio Riera.
Riera foi o responsável pela delação premiada na Operação Lava Jato de Fernando Falcão Soares, o Fernando Baiano, apontado como operador do PMDB em contratos na Diretoria Internacional da Petrobrás.
O criminalista nega ter sido contratado por Cabral. Segundo ele, seu trabalho, atualmente, está relacionado somente à defesa da ex-mulher de Cabral Susana Neves Cabral. Ela foi alvo de condução coercitiva na Operação Eficiência, ontem.
Entretanto, o Estado conversou com duas fontes com acesso ao núcleo de defesa de Cabral que confirmaram a escolha do político por uma negociação de acordo de delação. Essa fontes também informaram que o companheiro de cela de Cabral, o ex-secretário de Obras do Rio de Janeiro Hudson Braga, é outro alvo da Calicute que já comunicou a Procuradoria e seus advogados sobre o interesse no acordo. Braga é apontado pela Polícia Federal como operador administrativo do suposto esquema criminoso ligado ao exgovernador do Rio.