Adeus ao pai da democracia portuguesa

Paloma Oliveto

08/01/2017

 

 

OBITUÁRIO » Referência na política lusitana no século 20 pela luta contra o regime salazarista, duas vezes presidente e primeiro-ministro em três ocasiões, Mário Soares morre aos 92 anos, em Lisboa. Governo decreta luto nacional

 

Nas 32 páginas manuscritas em papel-ofício, Mário Soares registra, em uma caligrafia muitas vezes ininteligível, uma revolução pacífica na história de Portugal. Pela primeira vez desde 1926, o Palácio de Belém será ocupado por um presidente civil. No discurso de posse, lido em 9 de março de 1986, um dos principais protagonistas da redemocratização do país ibérico, causa pela qual foi perseguido, preso 12 vezes e exilado, repete o que vem dizendo durante a campanha. Não desempenhará o papel de um líder partidário. Ele será o presidente de todos os portugueses.

Ontem, aos 92 anos, o socialista morreu no Hospital da Cruz Vermelha, em Lisboa. A saúde de Soares estava deteriorada desde 13 de dezembro, quando foi internado. O primeiro-ministro, António Costa, decretou luto nacional de três dias, período em que ele será velado no Mosteiro dos Jerônimos, na residência da família e na Câmara Municipal da capital. O enterro ocorrerá no Cemitério dos Prazeres, depois de o caixão passar pelo Palácio de Belém, pela Fundação Mário Soares, pela Assembleia da República e pelo Largo do Rato, onde está a sede do Partido Socialista.

“No que era decisivo, Mário Soares era sempre vencedor”, disse o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, que convocou o país a se unir em uma batalha pela “imortalidade do legado” do socialista. “Iremos vencer esse combate, porque dele nunca desistiremos, como Mário Soares nunca desistiu”. Em nota, o presidente da Comissão Europeia, o belga Jean-Claude Juncker, lembrou que “a vida de Mário Soares confunde-se com a história recente de Portugal e com episódios marcantes do processo de construção da União Europeia”.

No Brasil, o presidente Michel Temer divulgou nota, dizendo que “o mundo perde um estadista e um defensor da democracia e da liberdade”. O ex-presidente José Sarney lembrou que Soares “foi o responsável pela salvação de Portugal na grande crise ideológica que viveu depois da revolução dos Cravos”. O ministro das Relações Exteriores, José Serra, declarou, em comunicado, que teve “o privilégio de conviver com Mário Soares e testemunhar suas notáveis qualidades como pessoa, líder político e grande estadista” . O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva escreveu que o português “sempre defendeu e trabalhou pela cooperação e intercâmbio entre Brasil e Portugal, aproximando nossas nações”.

 

Deportação

Nascido em Lisboa, em 1925, Mario Soares vinha de uma família de tradição republicana e, ainda muito jovem, aos 18 anos, entrou para o Movimento de Unidade Nacional Antifascista, ligado ao Partido Comunista Português (PCP). Três anos depois, aderiu ao Movimento de Unidade Democrática. Em 1955, já desligado do PCP, fundou a Resistência Republicana Socialista, fazendo forte oposição ao ditador António de Oliveira Salazar. As atenções do governo se voltam mais furiosamente a Soares a partir de 1957, quando, formado em direito, começa a defender os opositores do regime. A luta pela democracia lhe rendeu 12 prisões — ele se casou com a atriz Maria Barroso na cadeia, por procuração — e a deportação sem julgamento à Ilha de São Tomé. Na década de 1970, conseguiu se exilar na França.

A volta de Soares a Portugal acontece em 1974, três dias depois da Revolução dos Cravos, quando o Estado Novo foi derrubado. A partir daí, as atividades políticas do socialista, recebido por uma multidão em seu regresso, se intensificam. Ele foi ministro dos Negócios Estrangeiros, três vezes primeiro-ministro e negociador da entrada de Portugal na Comunidade Econômica Europeia (a atual União Europeia), antes de ocupar a Presidência, em 1986, sendo reeleito depois, com mais de 70% dos votos. Passados 20 anos, ele tentou voltar ao cargo, mas ficou em terceiro lugar, com menos de 20% dos votos.

Nos mais de 40 anos de vida pública, Mário Soares esteve longe de ser uma unanimidade. Os conservadores jamais o perdoaram pela campanha anticolonialista, que libertou o Timor-Leste e países africanos do controle de Lisboa. Os próprios socialistas muitas vezes o criticaram por ter engavetado o crachá do partido, como prometeu fazer na posse, nos períodos como governante.

A luta do político pela democracia, porém, é reconhecida por ambos os lados. “Há figuras que marcam e marcarão nossa democracia. Não precisamos ser da mesma bandeira política para reconhecer o que fizeram pelo país”, comentou, sobre Mário Soares, o conservador Rebelo de Sousa, no fim de dezembro. “Minha geração sempre viveu em liberdade, e isto devemos, em grande parte, a Mário Soares”, disse, por sua vez, o prefeito socialista de Lisboa, Fernando Medina, após visitá-lo no hospital. Adversário político histórico de Soares, o ex-presidente português Cavaco Silva emitiu nota, dizendo que Portugal perdeu “uma das pessoas mais marcantes do século 20”. “Em momentos conturbados, Mário Soares soube estar na primeira linha, demonstrando uma coragem extraordinário na luta pela democracia pluralista”, afirmou.

Depois da morte da mulher, em 2015, Mário Soares passou a aparecer cada vez menos em público. A última aparição ocorreu em setembro do ano passado por ocasião de uma homenagem à esposa. Eu uma das derradeiras entrevistas, há dois anos, foi perguntado pelo jornal i se seria imortal para a história. “Eu? Não! Eu sou um pobre homem que teve a sorte de ter tomado posições e de ter acertado e de ter sido auxiliado por muita gente.”

 

 

Correio braziliense, n. 19585, 08/01/2017. Mundo, p. 12