ENTREVISTA - Ernesto Lozardo

Rosana Hessel e Denise Rothenburg

15/01/2017

 

 

Presidente do Ipea diz que idade mínima na Previdência é inegociável e que mudança administrativa em estudo afetará 200 mil cargos

 

O economista Ernesto Lozardo, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é categórico ao afirmar que, com a reforma da Previdência, o brasileiro vai entender o que é capitalismo de mercado. “O Brasil tem em mente a política de estado, que o estado favorece. Gostamos do capitalismo de estado. Só que esse capitalismo é socialmente irresponsável”, afirma.

Lozardo é um dos principais conselheiros do presidente Michel Temer. A missão desse governo, segundo ele, são as reformas e, nesse sentido, a “pinguela” à qual o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso se referiu, é a prudência. Ele avisa que idade mínima da reforma da Previdência “é inegociável” para o governo e destaca que, se o governo federal não solucionar, de maneira adequada, a crise fiscal, não conseguirá resolver a dos estados. “A União não tem dinheiro para salvar estados e municípios. Não tem dinheiro para salvar ninguém, na verdade”, explica.

O economista acredita que a taxa básica (Selic) encerrará 2017 em 9,5% ao ano, visto que o Banco Central acelerou o processo de cortes dos juros devido à redução do risco fiscal, e não somente pela queda da inflação. “Essa taxa de um dígito facilita a reposição dos estoques no setor de serviços. Não é que cria uma nova abertura para o crédito. Isso vem mais tarde. Mas abre a possibilidade para a renegociação da dívida das famílias e das empresas”, afirma ele, que acredita que o crescimento sustentável só virá com aumento da produtividade.

Segundo Lozardo, o governo desenha uma verdadeira reforma administrativa, medida que poderá envolver 200 mil cargos, mas ainda demanda tempo. “Haverá uma proposição para tornar o estado mais eficiente. Mas não dá para fazer tudo ao mesmo tempo”, avisa. A seguir, trechos da entrevista concedida por ele ao Correio:

 

O senhor acompanhou as concessões no governo Dilma. O que mudou, agora, além do fim do limite da taxa de retorno?

Na área de infraestrutura tem uma mudança radical. O governo está recuperando a lógica econômica do investimento. O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) tem uma participação importante, mas certamente o mercado de capitais terá um papel maior. A atual gestão traz aos investidores uma racionalidade maior, com projetos melhor elaborados. Tudo isso está indo na direção de se ter uma orientação mais racional, tirando a responsabilidade pública do financiamento e colocando mais a responsabilidade pública na designação das prioridades.

 

Mas isso está um pouco lento...

A lentidão tem uma razão de ser importante. Ninguém vai investir numa economia instável. O papel do governo é a realização das reformas. Isso significa, sob o ponto de vista macroeconômico, ganhar mais produtividade, que tem dois pilares: o custo do capital e o custo da produção. O realismo econômico, no tocante ao custo do capital, vem com as reformas que estão sendo propostas, tanto a fiscal quanto a da Previdência. Isso dará ao Banco Central a certeza de que estamos saindo da dominância fiscal, afastando o risco. A razão de o BC estar agora acelerando a queda dos juros é essa. O risco fiscal está sendo afastado da economia, portanto, o BC tem mais certeza de que pode reduzir taxas de juros sem um repique da retomada de gastos fiscais.

 

O senhor acha que o risco fiscal já está afastado? A gente tem uma crise dos estados…

São duas coisas. Na área federal, que é o coração da atividade econômica, tem um peso muito grande. Estamos tratando de coisas complexas. Primeiro, precisamos entender que governo é esse.

 

O presidente Fernando Henrique Cardoso disse que era uma pinguela…

Bom… O presidente Fernando Henrique é inteligente e sabe tratar com a mídia muito bem, e sabe que país estamos construindo. A figura da pinguela foi no sentido de mostrar que o risco existe. Ele não está criticando o governo, está dizendo que estamos frágeis ainda. Isso é inquestionável. A mudança que ocorreu do governo anterior para este — e eu faço parte dessa cultura — é a de que há um capitalismo de mercado com responsabilidade social. Assim é que eu definiria o governo Temer. Na equipe econômica, há uma sintonia de raciocínio e de propósitos muito grande, e não existe fogo amigo.

 

Mas só isso não garante o sucesso fiscal e a resolução da crise dos estados...

Se o estado federal não resolver, de maneira adequada, a crise fiscal, muito menos resolverá a dos estados. A crise nos estados é muito mais por gasto de pessoal e previdenciário. O Ipea está assessorando o governo tanto na área federal quanto na estadual. Terá que haver uma porta de saída dos estados e é nessa porta que estamos trabalhando.

 

Mas essa saída seria só na área de Previdência ou global?

Global. A porta de saída envolverá projetos de lei e forma legal de buscar uma solução. O que me deixa muito esperançoso nisso tudo é que os Estados Unidos entraram na crise financeira, que depois se tornou uma crise fiscal, em 2008, e somente agora, estão saindo disso e voltaram a crescer de forma robusta. O Brasil voltará a crescer, com essas mudanças, já a partir do ano que vem.

 

Para isso terá que reduzir os custos...

Se não houver reformas fiscal e previdenciária, os juros vão para o imponderável. Reduzir o custo da produção exige outras reformas: tributária e acordos trabalhistas. Seria uma demagogia propor reforma tributária sem ter acertado a reformas fiscal e a previdenciária. Esse governo está dando esses passos com muita prudência. A pinguela é essa. Se você pode passar da redução do custo do capital para, depois, o custo da produção, você constrói uma passarela muito sólida.

 

Mas a reforma fiscal foi só PEC do Teto, que não fica em pé sem a reforma da Previdência. E a reforma administrativa anunciada menciona economia de R$ 200 milhões, não é nada...

Urgente é isso. Na reforma administrativa, são mais de 200 mil cargos públicos. É um absurdo. O Ipea está envolvido nesse estudo com o Ministério do Planejamento. Haverá uma proposição para tornar o estado mais eficiente. Mas não dá para fazer tudo ao mesmo tempo. Prefiro, primeiro, terminar a reforma do custo do capital, ou seja, investimento, para depois reformar o custo da produção. Feito isso, os componentes macroeconômicos serão mais estáveis e previsíveis.

 

Como assim?

Com inflação, taxa de câmbio, taxa de juro real e a taxa de salário real previsíveis, estáveis, eu posso falar de crescimento macroeconômico acima de 2%, 3% ao ano, seguramente. Estamos numa fase de construção dessa economia mais produtiva. O Brasil não tem como crescer sem aumentar a sua produtividade. Se não quadruplicarmos a taxa atual de produtividade, o país não tem como crescer acima de 2,5% ao ano de forma sustentável. Hoje, a nossa taxa de produtividade é 0,5% ao ano.

 

Quanto à reforma da Previdência, a gente já percebe no Congresso uma vontade de mudar o texto, em especial, na questão da idade mínima de 65 anos para homens e mulheres. Até onde dá para ir sem comprometer a perspectiva de retomada da economia?

Não dá para mexer na idade mínima. A questão demográfica brasileira é gravíssima sob a ótica da Previdência. A população idosa vai crescer a mais de 3% ao ano e a jovem, menos de 1%. Haverá menos jovens entrando no mercado de trabalho e mais idosos. A parcela de jovens não vai conseguir sustentar a de idosos. Por isso, a idade mínima é crucial para a sustentabilidade da Previdência. Porém, o que devemos ter em mente é que, pela primeira vez, a questão da Previdência virou agenda nacional.

 

Lá atrás, ela esteve, quando houve uma série de propostas de reforma nessa área…

Mas foi meio na marra. A crise dos estados, que também é uma crise previdenciária, levou a sociedade a perceber o risco que corre de não ter aposentadoria no futuro, de ficar sem nada. Será preciso se preocupar com a aposentadoria desde cedo, desde a juventude. As aposentadorias também precisam ser corrigidas apenas pela inflação. A produtividade é de quem investe e não de quem se aposenta. Gostamos do capitalismo de estado. Só que esse capitalismo é socialmente irresponsável. A história mostra isso. Sempre quem pagou a conta foi a sociedade, com mais inflação, mais incerteza e desemprego. O Brasil vai ter que entender o que é o capitalismo de mercado.

 

Mas tem gente com saudade…

Vão ter saudade de uma coisa irreal. Indo um pouco mais adiante, é preciso ter claro que a reforma da Previdência não se encerra nessa negociação. Ela vai exigir outra daqui a 15 ou 20 anos. Portanto, a idade mínima não dá para mexer, e algumas coisas terão que ser negociadas fora da reforma da Previdência, como o caso dos militares. Mas a possibilidade de se transformar a reforma da Previdência em um Frankenstein é mínima, e por razões óbvias. A sociedade está ligada nesse assunto.

 

O senhor falou de crescimento neste ano, mas os indicadores de atividade ainda não deram sinais de recuperação...

A nossa previsão para este ano é de 0,5% (de crescimento no PIB). No ano que vem, um pouco mais, 1,6%, e 2,2% em 2019. Já é alguma coisa. A gente está prevendo para este ano 9,5% ao ano de juros, e essa taxa de um dígito facilita a reposição dos estoques no setor de serviços. Não é que cria uma nova abertura para o crédito. Isso vem mais tarde. Mas abre a possibilidade para a renegociação da dívida das famílias e das empresas, permite um alongamento do fluxo do endividamento para uma taxa de juros menor e a retomada do crescimento. Para ter uma ideia, na crise americana, as famílias deviam 120% da renda disponível. Hoje, são 65%, e voltaram a crescer.

 

Mas os juros lá são muito menores do que aqui...

O brasileiro está muito endividado, não é nesse nível, mas os juros representam 22% da renda familiar e 40% da dívida total. Está caindo, já foram 46% da dívida e 25% da renda. Com a queda dos juros, há uma possibilidade de alongamento da dívida com juros menores. O governo deve estimular a renegociação via bancos públicos, e os privados vão acompanhar, porque têm interesse em melhorar a rentabilidade com a queda da Selic para 9,5% até o fim do ano. Isso abre a possibilidade de redução do risco de inadimplência das famílias e das empresas, que está elevadíssimo.

 

E o desemprego? Quando vislumbrar a retomada?

O desemprego deve continuar elevado. Deve sair de 12% hoje para 11% ainda neste ano porque ninguém tinha pensado que os juros iam cair tão rápido. E vamos voltar a crescer 2,2%, em 2019. Os Estados Unidos, que têm uma economia mais produtiva que a nossa, levaram oito anos. Eles chegaram às margens do abismo fiscal, fecharam hospitais, escolas, bibliotecas... Aqui não.

 

Aqui não fechou porque a dívida está aumentando, mas os estados estão com dificuldade para pagar salários...

Os estados não estão pagando, mas essa é uma equação incompleta. São 11 milhões de pessoas contra 1 milhão do setor público federal. É um bocado de gente e aí é mais difícil. Mas tudo isso é fruto da falta de rigor fiscal. Acho que agimos de forma tão imprudente como agiram países periféricos da União Europeia que achavam que, em algum momento, a Alemanha pagaria a conta. Chegamos a esse mesmo lugar.

 

Mas aqui eles continuam achando que o governo federal vai pagar essa conta...

Não vai pagar. Tem que haver um procedimento legal que permita uma saída dessa crise fiscal de estados e municípios. A União não tem dinheiro para salvar ninguém na verdade. Temos que reformular a lógica da atividade do governo federal na condução dos gastos públicos. Discutir prioridades de gastos vai ser mais relevante daqui para frente do que meramente o gasto.

 

E a trajetória da dívida vai continuar crescendo até quando?

A dívida pública bruta vai continuar crescendo. Ela atinge 92% do PIB até 2020 e começa a recuar e só retornará ao nível de 2015 daqui a 20 anos, se tudo for bem. O populismo fiscal deu nisso. Agora, estamos no realismo econômico.

 

 

Correio braziliense, n. 19592, 15/01/2017. Economia, p. 12.