O Estado de São Paulo, n. 45029, 29/01/2017. Espaço aberto, p. A2

O americanismo e nós

 

Alberto Aggio

 

O americanismo nunca teve significado unívoco na História da América Latina. Em áreas de colonização espanhola reportava- se ao espaço controlado pela metrópole. No Brasil foi entendido desde o início como o modelo bem-sucedido de sociedade advindo dos EUA.

Exerceu forte atração entre os intelectuais, expandindo-se, no século 20, para grupos sociais emergentes que passaram a viver a dinâmica da industrialização, da urbanização e do consumo de bens materiais e culturais inspirados na vida norte-americana. O americanismo faz parte da nossa imaginação intelectual e expressa uma adesão às transformações que, inspiradas naquele modelo, impactaram a sociedade brasileira irreversivelmente.

A influência americana no Brasil tem longa história. Antes e depois da Independência, muitas rebeliões manifestaram simpatia pelo modelo federalista norte-americano, ainda que estivessem influenciadas pelo liberalismo radical francês.

Até então o americanismo inspirava mudanças no nível superestrutural, como elemento de contestação à ordem política, primeiro colonial, depois independente.

Na segunda metade do século 19 a influência do americanismo foi notável. Ele se afirmou como modelo de reorganização do Estado e da vida social, embora as dificuldades para sua adoção tenham forçado os novos dirigentes a buscar uma síntese com a experiência ibérica aqui construída. Construir a nação era inscrever as sociedades latino-americanas na onda civilizatória contra a “barbárie”.

Assimilado pelos “de cima”, o americanismo não assumiu caráter popular nem promoveu uma reforma sociopolítica, moral e intelectual que alicerçasse as novas nações.

A recepção do século 20 ao americanismo foi negativa. Em 1900, em Ariel, José Enrique Rodó afirmava que o “espírito do americanismo” estava baseado numa “concepção utilitária” do destino humano e pregava “a igualdade na mediocridade”.

No Brasil, Sérgio Buarque de Holanda reiterou o argumento, ainda que, em parte, o tenha revisto mais tarde.

A virada se dá três décadas depois, com a Revolução de 1930 e o que se seguiu, fazendo que o País passasse a vivenciar uma “americanização paradoxal”.

Por não contar com um Estado liberal, o americanismo acabou incorporado às estratégias modernizadoras de um Estado autoritário.

A “tradução” do americanismo feita por Vargas ampliou direitos, mas os subsumiu ao Estado, o que acarretaria uma perda de autonomia da sociedade em relação ao Estado, estabelecendo-se a partir de então uma perene herança de autoritarismo na nossa vida política. Construção essa não antagonizada pela experiência democrática pós-Estado Novo, quando Juscelino Kubitschek atribuiu um sentido positivo ao transformismo americanista, o que daria base ao nacional-desenvolvimentismo, isolando as elites liberais e capturando o apoio dos comunistas.

O último ciclo de modernização, sob a égide dos militares de 1964, conheceu um americanismo selvagem que alterou a morfologia da sociedade, as bases da produção industrial e a infraestrutura do País. Mesmo assim, não se pode deixar de reconhecer que o regime militar, mudando os atores, deu continuidade à modalidade de modernização conservadora anterior.

Após 20 anos de intensa transformação da sociedade, o americanismo aportou no “mundo dos de baixo” e, com ele, a “revolução dos interesses” (Werneck Vianna), coração dos movimentos sociais, marcaria indelevelmente o processo de transição para a democracia, bem como a democratização brasileira das últimas três décadas. Nessa quadra, o americanismo encontraria, enfim, sua ambientação na sociedade brasileira, mas num contexto mundial absolutamente distinto, em razão da emergência da globalização, da revolução tecnológica e comunicacional, bem como do deslocamento do eixo econômico para o Oriente.

Se antes, especialmente no século 20, o americanismo se constituiu em elemento essencial do que Gramsci chamou de “revolução passiva”, quer como processo específico de modernização, no qual a hegemonia nascia das fábricas – na Europa, uma construção da política –, quer como impulso externo que induz e acelera as transformações na periferia – no caso, impactando a modernização brasileira –, no início do século 21 evidenciase claramente um esgotamento desse caminho. Em novo cenário, poder-se-ia supor que o americanismo pudesse ser substituído pela globalização num novo curso da modernização, no qual o problema não seria mais a construção das estruturas de base da modernização, e sim a inserção das economias, antes periféricas, na economia globalizada.

Essa perspectiva foi vista com excessivo otimismo na passagem do século 20 para o 21.

Em contrapartida a essa visão edulcorada, as alternativas do “antiglobalismo” não foram críveis e convincentes, da mesma maneira que a demanda pelo retorno à chamada “questão nacional”.

Aliás, esses discursos acabaram derivando da esquerda para a direita.

O fato a ser reconhecido é que não há mais nenhuma possibilidade de se realizar uma “fuga para a frente”. Em contexto pós-fordista, o americanismo perdeu sua função como vetor da mudança da História, da mesma forma que com o fim do “comunismo histórico” se havia esgotado a energia histórica da “revolução em ativação”.

Em tempos de grande transformação, é desaconselhável a defesa de uma reiteração da modalidade de “revolução passiva” que construiu nossa modernização, na qual o americanismo foi mobilizado para que “a conservação impusesse sua direção à mudança”, como atestara Gramsci para contexto similar.

O americanismo, tal como o conhecemos, se esgotou. Com isso se esgotou também o antiamericanismo.

Donald Trump e a resistência a ele são desafios similares aos nossos embates políticos. A regressão não se consumou e a democratização permanece como um dado do nosso mundo.