Prisões e sistema penal brasileiro

Roberto Bocaccio Piscitelli

06/02/2017

 

 

Normalmente, entre nós, a existência de um problema só é reconhecida quando ocorre uma tragédia, ou o país é destaque nas manchetes internacionais. Um clamor generalizado exige pronta e completa solução. Como consequência natural, as soluções encontradas são pífias e transitórias por serem precipitadas e oportunistas.

A tragédia dos presídios brasileiros é antiga e global. Para boa parte da população, a questão só incomoda quando a prisão está perto de nossa casa, há fuga de presos, ou a matança ultrapassa o imaginável. Muitos acham que deveria haver mais presos, prisão perpétua e pena de morte, com condenações irreversíveis. A desastrosa sinceridade do então secretário da Juventude (“deveria haver uma matança por semana”) dá uma ideia do pensamento de quem seria responsável pelas políticas das novas gerações. E é também a expressão inequívoca do ódio e intolerância que se espalham pela sociedade. A ânsia de vingança é ilimitada. (Vale, a propósito, ver o filme franco-iraniano O apartamento).

Construir mais presídios, criar vagas é demorado, caro e, provavelmente, inócuo. O crescimento do número de presos não é alcançável. Com a simples pretensão de instigar o debate por quem não é um especialista (já há muitos), sugiro considerar a adoção de iniciativas (de curto prazo), com reduzido impacto financeiro (como um economista) e distensionadoras do clima pavoroso (segundo o presidente) reinante nas nossas masmorras medievais.

É inadiável a revisão da sistemática de prisões temporárias e preventivas, que se mantêm por prazos indeterminados, arbitrados por uma autoridade judicial, sem condenação, a pretexto de aprofundar (?) investigações ou evitar que sejam prejudicadas. Excluem-se os casos de riscos iminentes à vida, à segurança, à integridade de outras pessoas, ou por crimes ou contravenções praticados de forma continuada. As investigações têm que preceder as restrições à liberdade, que nem sequer se justificam quando todos os tipos de sigilo foram quebrados; documentos e equipamentos, apreendidos; depoimentos, fornecidos. Indispensável fixar prazos também para as decisões recursais. Nem é preciso falar no habeas corpus, sob pena de se tornar letra morta.

Causa vergonha a constatação de que mais de 60% dos presos, hoje, no Brasil, não foram julgados e convivem com os demais condenados. É também escandaloso o fato de haver um número incalculável de presos que já cumpriram a pena. Evidentemente, em sua grande maioria, devem ser pobres e negros. Em outros termos: pior que um bandido solto é um inocente ou alguém permanecer preso após o cumprimento da pena. Liberdade não tem preço.

Outra reflexão diz respeito aos regimes de penas. Discordando dos que são contrários à progressão de regimes, penso que, rechaçando-os, estaremos admitindo que o encarceramento é incapaz de reeducar, de recuperar o indivíduo. Seria o fracasso de todas as nossas justificativas com vista à reinserção à sociedade. Regimes diferenciados, aplicados com seriedade, aceleram esse processo, reduzem consideravelmente os custos do sistema e oferecem as oportunidades hoje não disponíveis de estudo e trabalho.

Um terceiro ponto: a aplicação rigorosa de penas alternativas para os casos de menor gravidade e mais fácil reparação blinda o condenado da convivência em tempo integral com outros condenados, assegura a continuidade de seu projeto de vida e estimula a responsabilidade social. Uma estrutura apropriada de acompanhamento e controle, com todos os recursos tecnológicos existentes, é muito mais barata e eficaz que a criação de um Ministério da Segurança Pública.

E, finalmente, para os crimes de natureza propriamente financeira, cometidos por políticos e empresários, bem mais relevante que o encarceramento é a reparação dos prejuízos. Seria muito mais inteligente para o Estado reduzir seus elevados custos (com o imenso aparato policial e judicial) e dar oportunidade ao condenado, com as naturais vedações ao exercício de determinadas funções, de retomar uma atividade profissional que vinculasse parcela da remuneração à recuperação dos recursos apropriados ou desviados do erário.

(...)

 

ROBERTO BOCACCIO PISCITELLI

Professor da Universidade de Brasília (UnB)

 

 

Correio braziliense, n. 19614, 06/02/2017. Opinião, p. 09.