Trump sabia de tudo

Rodrigo Craveiro

15/02/2017

 

 

EUA EM CRISE » Presidente foi informado, há mais de duas semanas, sobre o fato de Michael Flynn, então conselheiro de Segurança Nacional, ter mentido para o vice, Mike Pence, sobre conversa com embaixador russo. Senadores pedem investigação de elos com Putin

 

 

Horas após a renúncia do general Michael Flynn, conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, revelações da imprensa agravaram a primeira crise do governo norte-americano, enquanto senadores republicanos e democratas exigiam investigação sobre as relações do presidente Donald Trump com o colega russo, Vladimir Putin. Flynn é acusado de mentir para o vice-presidente Mike Pence, ao explicar denúncias vazadas pelo The Washington Post sobre conversas telefônicas que manteve com o embaixador da Rússia em Washington, Sergey Kislyak, em 29 de dezembro, três semanas antes da posse de Trump. Nas ligações, Flynn teria insinuado a retirada das sanções impostas a Moscou — ao ser questionado por Pence, ele negou ter discutido o tema. Flynn já tinha sido demitido pelo ex-presidente Barack Obama por insubordinação.

Sean Spicer, porta-voz da Casa Branca, declarou que “o nível de confiança entre Trump e o general Flynn erodiu, a ponto de o presidente sentir que devia fazer uma mudança”. “Isso levou o presidente a pedir sua renúncia.” No entanto, Spicer confirmou que, em 26 de janeiro, Trump tomou conhecimento das falsas afirmações de Flynn a Pence. Até então, supunha-se que Flynn decidira entregar o cargo, anteontem, de modo intempestivo. A pergunta no meio político é: por que o presidente demorou tanto tempo para agir?

De acordo com Spicer, a equipe de assessores de Trump estava “revisando e avaliando o tema, diariamente, para se certificar da verdade”, até concluir que houve violação da lei. Questionado por jornalistas, ele garantiu que Trump não pediu ao conselheiro de Segurança Nacional que abordasse o tema das sanções nas ligações para Kislyak. Líder da maioria no Senado, o republicano Mitch McConnell disse que é “altamente provável” que o Comitê de Inteligência investigue o caso.

Na carta-renúncia (veja foto), Flynn confessou ter transmitido “informações incompletas” a Pence. O jornal The New York Times divulgou que o FBI, a polícia federal americana, interrogou o general nos primeiros dias de governo. Não se sabe se Flynn foi desonesto com os agentes. Trump indicou o general da reserva Joseph Kellog para ocupar interinamente a vaga de Flynn. Outros nomes cotados para assumir o cargo, de forma permanente, são o vice-almirante Robert Harward e o general da reserva David Petraeus, ex-diretor da Agência Central de Inteligência.

A primeira baixa no governo em apenas 26 dias eleva as tensões entre a Rússia e os Estados Unidos. Fontes de inteligência revelaram ao NY Times que o Kremlin colocou em fase operacional míssil de cruzeiro que os EUA acusam de representar violação do tratado de armas firmado pelos dois países. Ao comentar a crise, Trump condenou os vazamentos. “A história real aqui é: por que há tantos vazamentos ilegais saindo de Washington? Esses vazamentos vão ocorrer enquanto eu estiver negociando sobre a Coreia do Norte etc?”, questionou, por meio do Twitter. Outro assessor pode estar com os dias contados. Segundo o site Breitbart, “três fontes ligadas ao presidente” colocam em xeque o futuro de Reince Priebus — o chefe de gabinete é considerado ineficiente no trabalho de relações com o Congresso.

Para Lilia Shevtsova, chefe do Programa de Política Doméstica Russa do Carnegie Endowment for International Peace (em Moscou), a renúncia de Flynn resulta dos esforços da comunidade de inteligência, que vazou os contatos com o embaixador russo, e da luta da mídia contra Trump. “A situação se tornou ameaçadora para o presidente. Flynn pode ser acusado de traição ao Estado, e há sinais de que a história não terminou”, admite ao Correio, ao citar um suposto dossiê russo que traria dados comprometedores sobre Trump. “A comunidade de espiões contra-ataca Trump pelo comportamento agressivo e por subestimar organizações de inteligência.” Shevtsova crê que o caso mostra a vulnerabilidade do governo ante suspeita da “estranha afinidade com Putin”.

 

Celulares

Os senadores democratas Tom Carper e Claire McCaskill enviaram carta aos secretários James Mattis (Defesa) e John Kelly (Segurança Interna), e ao diretor da Agência de Segurança Nacional, Michael Rogers, na qual pedem detalhes sobre o smartphone usado por Trump. Os congressistas argumentam que o líder pode colocar em risco segredos nacionais se continuar com o antigo celular. Hoje, Trump receberá na Casa Branca o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu.

 

Eu acho

“Nós não temos nenhum dado sério para tirar conclusões sobre os contatos de Flynn com o lado russo. No entanto, de acordo com os vazamentos publicados pelo Washington Post, e outros do FBI, Flynn prometeu ao embaixador russo resolver o problema das sanções. Isso poderia ser visto como traição de Estado. Não estou certa se Flynn pode estar associado à ação de hackers durante as eleições dos EUA. No entanto, a história inteira complicará a normalização das relações entre Washington e Moscou.”

Lilia Shevtsova, chefe do Programa de Política Doméstica Russa do Carnegie Endowment for International Peace (em Moscou)

 

O que diz a carta-renúncia

Em carta de 13 de fevereiro, entregue às 20h20 (23h20 em Brasília), o general Michael Flynn anunciou a renúncia e lembrou que, no curso dos deveres como futuro conselheiro de Segurança Nacional, fez várias ligações para homólogos no exterior, ministros e embaixadores. No texto, ele lembrou que as ligações visavam facilitar transição suave. “Infelizmente, por causa do rápido ritmo dos eventos, eu inadvertidamente transmiti ao vice-presidente eleito e a outros informações incompletas sobre os meus telefonemas com o embaixador russo. Eu sinceramente me desculpei com o presidente e o vice-presidente, e eles aceitaram o meu pedido de desculpas”, afirmou (trecho em destaque). “Eu estou oferecendo minha renúncia, honrado por servir nossa nação e o povo americano de um modo tão distinto”, acrescentou.

 

Cotados ao cargo

Quem são os nomes para o posto de conselheiro de Segurança Nacional

 

Keith Kellog

» General da reserva, atuou como chefe de gabinete do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca. Aos 72 anos, é veterano da Guerra do Vietnã, onde serviu na 82ª Divisão de Transporte Aéreo. Em 2003, depois da invasão ao Iraque, atuou como chefe de operações da Autoridade Provisória da Coalizão, o governo transitório em Bagdá. Foi nomeado conselheiro de Segurança Nacional em exercício, enquanto Trump escolhe o ocupante permanente do posto.

 

David Howell Petraeus

» Diretor da Agência Central de Inteligência (CIA) entre 6 de setembro de 2011 e 9 de novembro de 2012, é um general de quatro estrelas, com 37 anos de serviços prestados ao Exército dos Estados Unidos. Atuou como comandante das Forças de Assistência em Segurança Internacional (Isaf) e comandante das forças dos EUA no Afeganistão. Também supervisionou as tropas de coalizão no Iraque. A renúncia ao posto na CIA ocorreu após a divulgação de um caso extraconjugal.

 

Robert Harward

» Ex-Seal — integrante das forças especiais da Marinha dos EUA —, Harward acumulou 38 anos de carreira militar. O vice-almirante também foi o número dois à frente do Comando Central dos Estados Unidos, subordinado ao atual secretário de Defesa, general James Mattis. Em abril de 2005, ocupou o posto de presidente do Centro de Contraterrorismo Nacional.

 

 

Correio braziliense, n. 19623, 15/02/2017. Mundo, p. 12.