Título: Reféns do horror
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 04/12/2011, Mundo, p. 24

Vítimas das forças do ditador Al-Assad, moradores de Homs e de Hama revelam drama ao Correio. Além de enterrar familiares e amigos, eles se veem obrigados a mudar a rotina e a driblar a morte. Cidades estão à beira de um desastre humanitário » Todos os dias, dezenas de sírios são abatidos pelas forças de segurança e por franco-atiradores leais ao ditador Bashar Al-Assad. "Toda casa em Homs tem um mártir ou um prisioneiro", afirma ao Correio Waleed Fares, um ativista de 25 anos que mora no bairro de Al-Khaldiah — um dos mais visados pelas forças de segurança. "O número de mártires aqui já passa de 80, sendo que cinco deles eram meus amigos", diz. Vários colegas dele estão presos e familiares se viram obrigados a abandonar suas casas. A vida mudou nesta cidade de 1,5 milhão de habitantes, distante 162km de Damasco. Segundo Waleed, as relações sociais se tornaram mais difíceis. "Mover-se de um lugar para outro é arriscado, por causa da presença de franco-atiradores e de barreiras militares. Podemos ser presos a qualquer momento", conta. "Os tanques permanecem nas ruas e a tristeza se abate sobre a população", lamenta. Ele sugere que Homs está à beira de um desastre humanitário. "A pobreza aumenta, falta comida e os suprimentos médicos começam a escassear."

Moradores do distrito de Inshaat, na mesma cidade, fazem fila para encher cilindros de gás: combustíveis em falta

Yazan Homsy, 25 anos, viu-se forçado a abandonar o mestrado em ciências econômicas pela Universidade de Damasco, sete meses atrás. "Muitos de nós deixamos o trabalho, com medo dos tanques nas ruas", afirma o morador do bairro de Baba Amro, também em Homs. De acordo com ele, após as 17h, a cidade se torna fantasma. "Todas as noites, os franco-atiradores ocupam os prédios do governo e os bancos. Escutamos explosões e disparos de armas automáticas, além de enxergarmos clarões em diferentes bairros", relata. Quatro vizinhos e dois primos foram executados pelas forças de segurança. O açougueiro, o farmacêutico e o comerciante de verduras também morreram.

Os depoimentos ao Correio coincidem com as conclusões da Comissão Independente de Investigação sobre a Síria. O relatório, liderado pelo brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, citou casos de estupros, assassinatos e abuso sexual de crianças, além de execuções sumárias de civis. A síria Baraa Agha, 21 anos, sabe que o fato de ser mulher em Homs a torna um alvo em potencial. Por isso, evita sair de sua casa, na Rua Al-Daplan, na região central da cidade. "A última vez foi duas semanas atrás", revela. Ela também largou os estudos e se tornou uma ativista às 2h de 18 de abril passado, quando os soldados mataram 300 manifestantes que estavam sentados na grama, entoando palavras de ordem contra o regime. Baraa escapou por um triz: deixou o local às 23h. "Ouvi os tiros de casa. Havia milhares de manifestantes na praça", diz.

Ela dorme cerca de três horas por noite e sempre acorda ao som de explosões e de disparos de artilharia. "Eu cancelei todos os aspectos da vida que eu tinha. Não saio de casa durante o dia, porque posso ser presa ou sequestrada. À noite, estou vulnerável aos franco-atiradores ou às metralhadoras", comenta. Nos últimos meses, ela resolveu se dedicar à documentação dos crimes e das violações dos direitos humanos. "Antes de março, minhas preocupações se limitavam a estudar. A política não fazia parte de meus propósitos", lembra. "Desde o início da revolução, eu já não penso mais em mim mesma e em meus sonhos, que são ridículos diante do sonho de liberdade do meu povo", acrescenta.

Em casa Uma liberdade que custa muito caro. Como vários outros sírios, Baraa tem histórias de horror para contar. O primo Motassem Bargoth, de 10 anos, foi morto por um franco-atirador ao abrir a janela. Dezenas de colegas ficaram feridos ou estão atrás das grades. "Uma amiga de minha mãe acabou atingida por uma única bala dentro de casa, que lhe causou hemorragia nos pulmões, no fígado e no útero", afirma. De acordo com ela, cada vez que as forças de Al-Assad invadem um bairro, os moradores enfrentam vários dias sem eletricidade, água ou acesso à internet. "Acordamos e adormecemos ao som das balas e não podemos nem mesmo ver nossos vizinhos ou amigos, por medo de sermos atingidos", lamenta a ativista. Mas ela assegura que nenhuma bala será capaz de demover os moradores de exigir a queda do ditador. "Até as crianças estão protestando como podem, em becos estreitos ou mesmo das varandas de suas casas. Elas rasgam as fotos do presidente que estampam os livros escolares e escrevem a palavra "liberdade" nas páginas."

Impressionado com as denúncias de crimes cometidos pelo Estado na Síria, o Conselho de Direitos Humanos decidiu nomear um investigador e abriu espaço para ações mais contundentes do Conselho de Segurança da ONU e do Tribunal Penal Internacional. "O mundo permanece de braços cruzados. As potências só olham para seus interesses e fecham os olhos para o massacre", lamenta Yazan, que também vê um desastre humanitário. "Em alguns bairros, os serviços básicos de fornecimento de água, eletricidade e comunicações inexistem. Há pilhas de lixo espalhadas por muitos bairros, pois o governo tenta impedir que os funcionários limpem as áreas onde a oposição se concentra", acrescenta.

Em Hama, Abu Hassan Al-Hamwi, 25 anos, relata ações brutais das "gangues de Al-Assad". "Os soldados cortaram as mãos de meu vizinho apenas porque ele abriu a padaria, para alimentar o povo com pães", desabafa. Ele alega que mais de mil pessoas já morreram na cidade, e acusa o ditador de ter contratado mercenários da milícia xiita libanesa Hezbollah, além de guerrilheiros do Irã e do Iraque. "Queremos que o Conselho de Segurança intervenha e proteja os civis." Segundo Abu Hassan, os moradores enfrentam o inverno sem diesel para alimentar os aquecedores e sem gás de cozinha.

Mais 18 mortos Pelo menos 18 pessoas — 11 civis e sete militares e membros das forças de segurança — morreram ontem na Síria, segundo o Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH). As mortes foram registradas em Idleb (320km a nordeste de Damasco), Tafas (sul da província de Deraa) e em Homs, principal foco da rebelião contra o governo de Bashar Al-Assad. Segundo a Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Navi Pillay, a repressão aos protestos na Síria já deixou um saldo de 4 mil mortos desde o início das manifestações, em março passado.