O Estado de São Paulo, n. 45015, 15/01/2017. Política, p. A6

STF julga e é julgado

 

Eliane Cantanhêde

 

Neste 2017 tão tumultuado desde o primeiro dia, um personagem se meteu em praticamente tudo o que acontecia e teve destaque na vida nacional: a ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal e, por consequência, do Conselho Nacional de Justiça. Mas esse destaque é da Cármen Lúcia? Ou é do presidente do STF, não importa se é Cármen, João, Maria ou José, nesses tempos quentes na política, na economia, em tudo?

Nos primeiros 15 dias do ano, ela foi a Manaus para se informar sobre os presídios, tomou um longo café com o presidente Michel Temer, se encontrou duas vezes com o ministro da Justiça, uma com o da Fazenda, outra com o das Comunicações, presidiu reunião de presidentes de tribunais de Justiça de todo o País, desbloqueou recursos federais para o Rio e manteve o bloqueio para Minas – seu Estado.

É uma rotina estonteante – que o digam seus auxiliares diretos –, e aí entram dois fatores. Um é a personalidade dessa mulher que foi interna em colégio de freiras, acordando de madrugada, estudando dia e noite, forjando uma rotina e uma personalidade espartanas, apesar do ótimo humor. Outro é que o STF vem assumindo um protagonismo proporcional ao tamanho da crise, ou das crises.

Nessas horas, os três Poderes emergem com muito mais força e criam mecanismos de compensação. Quanto mais o Legislativo e o Executivo se fragilizam, mais o Judiciário interfere, para o bem e para o mal. Destitui o presidente da Câmara, tenta derrubar o do Senado, assume um papel legisferante, vira mediador nas disputas da União com os Estados.

 

Dois ministros marcaram época, continuam inspirando os discursos dos atuais 11 integrantes do STF e pairando sobre o plenário, os gabinetes e o chá da tarde: Paulo Brossard e Sepúlveda Pertence, grandes juristas, oradores e líderes. Outros combinaram uma biografia contundente com o momento histórico, como Joaquim Barbosa, primeiro ministro negro e de origem pobre, que, como Ayres Britto, teve coragem pessoal no julgamento do mensalão, que envolveu o partido do presidente da República e aquela gente que jamais supusemos entre as grades. Tudo potencializado ao vivo pela TV Justiça, criada em 2002.

Houve também quem cansasse da toga antes da hora, como Francisco Rezek, a primeira mulher ministra, Ellen Gracie, e o polivalente Nelson Jobim, que brilhou no Judiciário, no Legislativo e no Executivo: presidente do STF, Constituinte de 1988, ministro da Justiça de Fernando Henrique e da Defesa de Lula. E que, aliás, continua no jogo.

Cármen Lúcia assumiu a presidência nesse rastro de importância crescente do STF, com decisões que envolvem outros Poderes, como agora, quando a União bloqueou dois repasses para o Rio, que atrasa até salários de servidores. Ela desbloqueou, atraiu a visita de Meirelles e virou madrinha de um acordo entre União e Estado que deve servir de modelo para os demais. Mas no momento também pululam egos, ideologias e disputas entre os próprios ministros, com a audácia de alguns, como Gilmar Mendes, que preside o TSE, vai julgar a chapa Dilma-Temer e se mete no avião presidencial com Temer até Lisboa. E ele não é o único audacioso.

Todo mundo esqueceu rápido o fatiamento da Constituição no Senado que, sob a presidência do ministro Ricardo Lewandowski, aprovou o impeachment de Dilma, mas manteve seus direitos políticos. Assim como esquecemos do contorcionismo jurídico da Corte, depois que o ministro Marco Aurélio, com uma canetada, determinou o afastamento do presidente do Senado. Cármen Lúcia engavetou o primeiro e deve ter sofrido muito para desfazer o segundo.(...)


____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

'Arengão' e Rodrigo, Separados na Lava Jato

 

Luiz Maklouf Carvalho

 

 

“Arengão, bota a língua no palato”, dizia o e-mail do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, para o subprocurador-geral e ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão. Ou “Arengão”, apelido com que Janot o carimbou, só entre eles, nos bons tempos em que a amizade prevaleceu. Por maio de 2016, quando o e-mail chegou, já iam às turras.

Recém-saído do Ministério da Justiça, nem completados dois meses de mandato – 14 de março a 12 de maio, no governo da presidente Dilma Rousseff –, Eugênio José Guilherme de Aragão, de 57 anos, estava de volta à Procuradoria-Geral da República, onde entrou em 1987. E tratava, com Rodrigo, que é como chama Janot, da função que passaria a ocupar.

Entre e-mails e “zaps”, o procurador-geral perguntou se o ex-ministro gostaria de assumir a 6.ª Câmara do Ministério Público Federal (MPF) – a que trata de populações indígenas e comunidades tradicionais. “Não gostaria”, respondeu Aragão. “Teria de lidar com o novo ministro da Justiça (Alexandre de Moraes, de Michel Temer), com quem eu não tenho uma relação de confiança”, explicou. “E o Supremo (Tribunal Federal)?”, contrapôs Janot. “O Supremo a gente conversa”, respondeu Aragão. “Então, tá, Arengão, bota a língua no palato”, escreveu o procurador-geral. “Rodrigo, quer saber, nós somos pessoas muito diferentes, e eu não dou a mínima para cargos”, respondeu Aragão, sem mais retorno.

“Que diabos quer dizer ‘bota a língua no palato’?”, perguntou-se Aragão durante a entrevista ao Estado, gravada com seu consentimento, em uma cafeteria da Asa Sul do Plano Piloto, em Brasília. Foi uma dúvida que surgiu ao ler a metáfora sobre o céu da boca. “Significa um palavrão?”, perguntou-se, experimentando dois ou três. Conformou-se com a ordinária explicação de que Rodrigo o mandara calar a boca e/ou parar de arengar. Era um sábado, 21 de maio. Na segunda, 23, um impalatável Aragão foi ao gabinete de Janot.

“Ele me deu quarenta minutos de chá de cadeira”, contou, no segundo suco de melancia. Chegou, então, o subprocurador da República Eduardo Pelella, do círculo de estrita confiança de Janot (mais ontem do que hoje). “O Rodrigo é o Pink, o Pelella é que é o Cérebro”, disse Aragão, brincando com o seriado famoso.

Pelella, que não quis dar entrevista, levou-o, “gentil, mas monossilábico”, à sala contígua ao gabinete, e foi ter com Janot. Quando sentiu que outro chá de cadeira seria servido, Aragão resolveu entrar. “Os dois levaram um susto”, contou. Pelella pediu que o colega sentasse, e se retirou.

Começou, então, conforme diálogo relatado por Aragão ao Estado, a tensa e última conversa de uma longa amizade:

Janot: Você me deu um soco na boca do estômago com aquela mensagem (“não estou interessado em cargos”).

Aragão: É aquilo mesmo que está escrito lá.

Janot: Então considere-se desconvidado.

Aragão: Ótimo. Eu não quero convite (para função), tudo bem, não tem problema. Olha, Rodrigo, nós somos diferentes. É isso mesmo. Para mim, você foi uma decepção...

Janot: O que você está querendo dizer? Vai me chamar de traíra?

Aragão: Não, traíra não. Não chega a tanto. Desleal, mas traíra não. (No caso Operação da Lava Jato) você foi extremamente seletivo...

Janot: Você vem aqui no meu gabinete para me dizer que eu estou sendo seletivo?

Aragão: É isso mesmo.

Janot: Você vai para a p... que o pariu... Você acha que esse (ex-presidente) Lula é um santo? Ele é bandido, igual a todos os outros...

Aragão: Você foi muito mesquinho em relação ao Lula, só porque ele disse que você foi ingrato (em razão da indicação para a função)... Não tinha nem de levar isso em consideração.

Janot: Isso é o que você acha. Eu sou diferente. O Lula é bandido, como todos os outros. E você vai à m...

Aragão: E os vazamentos das delações? Eu tive informações, quando ministro da Justiça, pelo Setor de Inteligência da Polícia Federal, que saíram aqui da PGR...

Janot: Daqui não vazou nada. E eu não te devo satisfação, você não é corregedor.

Aragão: É, você não me deve satisfação, mas posso pensar de você o que eu quiser.

Janot: Você vá à m..., você não é meu corregedor.

Aragão: Eu não vim aqui para conversar nesse nível. Só vim aqui para te avisar que estou de volta.

Nunca mais se falaram. O Estado quis ouvir Janot a respeito das declarações de Aragão. A assessoria de imprensa da PGR assim respondeu ao pedido: “O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, está em período de recesso e não vai comentar as considerações do subprocurador-geral da República Eugênio Aragão”.

 

Sem função. Desde então, sem ter sido designado para nenhuma função em especial, Aragão continua trabalhando normalmente como subprocurador-geral da República, no mesmo prédio em que despacha Janot.

Os dois foram amigos por muitos anos, relação que incluía as respectivas famílias. Não poucas vezes Aragão degustou a boa comida italiana que Rodrigo aprendeu a fazer. Compartilhavam a bebida, também, embora com menor sede.

A divergência começou, sempre na versão de Aragão, nos idos do mensalão, mais precisamente quando Janot, já procurador-geral – “com a minha decisiva ajuda”, diz Aragão – pediu a prisão de José Genoino (e de outros líderes petistas), em novembro de 2013, acatada pelo ministro Joaquim Barbosa, do Supremo. “O Rodrigo já tinha dito ao Genoino, na minha frente, e na casa dele, várias vezes, que ele não era culpado”, contou o ex-ministro da Justiça.

Como ministro do governo petista, Aragão aumentou o volume das críticas aos excessos da Lava Jato e aos frequentes vazamentos de delações premiadas ainda sob sigilo. Chegou a ser considerado, pelo procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, o maior inimigo da operação.

 

PARA LEMBRAR

Janot avalia 3º mandato

Chefe do Ministério Público Federal (MPF) desde o início da Operação Lava Jato, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, conforme informado pelo Estado na edição de anteontem, avalia a possibilidade de disputar o terceiro mandato para comandar a instituição. Sua intenção é proteger a força tarefa. Seu segundo mandato como procurador-geral da República termina em setembro deste ano.