A quem interessa não resolver os problemas da saúde pública de Brasília?

Humberto Lucena Pereira da Fonseca

11/03/2017

 

 

O Sistema Único de Saúde (SUS) é o mais amplo sistema de atendimento médico-hospitalar público e gratuito do mundo, por meio do qual todas as pessoas, sem qualquer distinção, podem prevenir e tratar seus problemas de saúde, dos mais simples aos mais complexos, na rede pública, sem pagar nada por isso. Possível desde a Constituição de 1988, a saúde pública gratuita, integral e universal está longe de ser uma utopia. É uma realidade, tornada possível por uma corajosa decisão de gestão pública. Uma decisão que é, porém, desafiadora diante de suas complexidades.

O desafio vem de tornar possível a saúde pública em um país tão grande e desigual como o Brasil. No caso específico do Distrito Federal, implica atender não apenas aos pacientes de Brasília, mas de todas as 22 cidades do entorno. E, muitas vezes, de mais além. O atendimento é amplo e universal. O dinheiro público, no entanto, é limitado. E mais curto em momentos de crise. Momentos de crise que ampliam a demanda pela saúde pública, uma vez que muitas pessoas têm abandonado os planos de saúde em virtude das dificuldades financeiras que enfrentam.

A acertada e generosa opção de tornar a saúde pública brasileira gratuita e universal impõe ao gestor coragem para solucionar os problemas que advêm das complexidades impostas, para alocar os limitados recursos públicos com a maior eficiência possível. Contra tais soluções, colocam-se diversos interesses. Daí, a pergunta feita no título: a quem interessa que os problemas da saúde pública do DF não sejam resolvidos? Quem se beneficia se a saúde pública não alcança, na sua plenitude, seus objetivos de ser universal, integral, gratuita e de qualidade?

A atual gestão da Secretaria de Saúde tem feito enorme esforço para regularizar, por exemplo, os contratos de aquisição de materiais e serviços. Realizou licitações que não eram realizadas há mais de dez anos. A quem beneficia se tais licitações não são realizadas ou se não são bem-sucedidas? Na urgência da saúde pública, situações não resolvidas obrigam despesas sem cobertura contratual. Do contrário, serviços, medicamentos e equipamentos vitais deixam de ser fornecidos. Esse cenário muitas vezes beneficia fornecedores, que, sem submeterem-se ao processo licitatório, perpetuam-se em relações precárias com o Poder Público.

Seguindo a determinação da Controladoria, da Procuradoria do DF e de outros organismos de controle, a Secretaria de Saúde reorganiza gratificações que vinham sendo pagas, segundo esses organismos, de forma irregular. A quem beneficia o uso irregular de dinheiro público? À população, certamente, não é. Nem ao próprio conjunto de servidores. No caso, por exemplo, da Gratificação de Titulação (GTIT), o pagamento, por conta dos questionamentos dos organismos de controle, não vem sendo feito para novos servidores desde 2015. A Secretaria de Saúde organiza neste momento um recadastramento dos servidores. Não deixará de pagar gratificação a quem tenha direito a ela de maneira regular e conforme a legislação. Ampliando o pagamento a todos os servidores, sem distinção. Não resolver tal questão é algo que não beneficia a população nem o conjunto dos servidores. Pode beneficiar alguns servidores e algumas graves distorções.

A Secretaria de Saúde colocou em curso as mudanças para que a atenção primária passe a atuar integralmente dentro da Estratégia Saúde da Família. Trata-se de um modelo consagrado e estimulado pelo Ministério da Saúde. Todos os principais especialistas em saúde pública têm convicção de que se trata do modelo mais eficaz de atendimento, inclusive, o Conselho de Saúde do DF. Constituídas por um médico de saúde da família, equipes de enfermagem e agentes comunitários de saúde, as equipes de Saúde da Família focam no atendimento ao cidadão que está sob sua responsabilidade e nos seus problemas específicos de saúde, e dedicando-se a um atendimento preventivo, sem descuidar da assistência aos agravos.

Atendem a um conjunto de cerca de 3.750 pessoas. Conhecem essas pessoas de perto. O atendimento evita que a maior parte das questões se agrave, e as equipes passarão a atender com horário marcado e por demanda espontânea e programada, com alta resolutividade. Assim, esvaziam-se as UPAs, as emergências dos hospitais e as filas dos ambulatórios de especialidades focais. O tratamento torna-se mais eficaz e mais barato.

A quem beneficia evitar que o tratamento de saúde se torne mais eficaz e mais barato? A todos aqueles que lucram se o tratamento permanece caro. Se os pacientes têm seus problemas agravados, precisam recorrer a cirurgias e tratamentos mais custosos. Se perdem a paciência com demoras e esperas excessivas, acabam recorrendo a serviços privados. Se não conseguem acesso, buscam advogados para judicializar seus tratamentos. A adoção da Estratégia Saúde da Família vai requerer readequações e treinamentos. A quem interessa não adotá-la? Aos que se acomodam nas suas zonas de conforto (ou de desconforto), recusando-se às mudanças necessárias para transformar a cara da saúde do Distrito Federal.

Finalmente, a quem interessa que o modelo universal e gratuito do Sistema Único de Saúde não dê certo? A quem deseja derrubar o modelo universal e gratuito do Sistema Único de Saúde. A quem já ensaia o discurso de que tal modelo é inviável, embora seja uma realidade desde 1988. E a alguns políticos e dirigentes sindicais, que fazem parte do grupo do “quanto pior, melhor” e atacam qualquer esforço de melhoria da gestão, na crença de que isso vai alavancar suas candidaturas e beneficiar seus projetos políticos pessoais. Diante das suas complexidades, o Sistema Único de Saúde não é perfeito. É um desafio complexo administrá-lo e, nesse sentido, as críticas e cobranças são necessárias e bem-vindas. Desde que não tragam dentro delas interesses ocultos de quem se alimenta do caos.

(...)

 

HUMBERTO LUCENA PEREIRA DA FONSECA

Secretário da Saúde do Distrito Federal

 

 

Correio braziliense, n. 19646, 11/03/2017. Opinião, p. 11.