'É preciso um garantismo integral', diz procurador 

Luiz Maklouf Carvalho 

05/02/2017

 

 

ENTREVISTA - Deltan Dallagnol

‘Se desenvolveu no País o hipergarantismo, que só olha os direitos do réu, e não os da sociedade’, afirma Dallagnol

Deltan Dallagnol, procurador da República, coordena a força-tarefa da Operação Lava Jato

Certa vez, numa viagem ao interior do Paraná, Deltan Dallagnol, o procurador da República que coordena a força-tarefa da Operação Lava Jato, ouviu, de um filho aflito, que o pai lhe contara ter sido diagnosticado com um tumor na próstata.

Passado um ano, o pai voltou ao médico, que confirmou o tumor, já maior. Mais um ano, e crescera mais. “O cara não tomava providência”, contou ao Estado em entrevista na PGR de Curitiba. “Até que o médico, preocupado, quebrou o protocolo e foi falar com o filho: ‘Olha, diagnóstico não vai resolver o problema do seu pai.

Tem de tirar o tumor’.”

A história ilustrou uma preocupação crescente de Dallagnol: a visão da Lava Jato como a solução do problema da corrupção. “Acham que vai ter um antes e depois da Lava Jato sem reformas estruturais – e não vai”, disse. O procurador ainda defendeu a linha teórica que chama de “garantismo integral”, “que garanta os direitos dos réus, mas também os da sociedade”. Abaixo, os principais trechos da entrevista:

Quem ganha e quem perde, e o quê, se ficar derrubada a proposta das dez medidas contra a corrupção, defendida pelo Ministério Público Federal?

Se elas não passarem, nós precisamos continuar lutando por reformas, para que o sistema de Justiça funcione. Eu vejo isso como um processo de fortalecimento da sociedade civil.

Não é uma visão de salvador da pátria?

Não. Se quisesse passar a ideia de salvador de pátria, diria que a Lava Jato vai transformar o País. Não é isso que falamos.

O que é que os srs. falam?

A sociedade vai perceber que a Lava Jato não é a solução. Ela faz o diagnóstico.

Explique melhor.

Existe a ilusão de que pessoas indo pra cadeia resolve o problema. O que a gente busca fazer é desconstruir essa ilusão, mostrando que o que pode contribuir para a redução dos índices de corrupção são a reforma na justiça criminal, a reforma política e a atuação sobre outras condições que favorecem a corrupção.

 

E a Lava Jato?

As pessoas acham que vai ter um antes e um depois da Lava Jato. Ela pode até contribuir, mas não resolve. Se não for seguida por modificações estruturais, tudo ficará como antes.

O sr. defende uma corrente teórica que se contrapõe ao que chamam de hipergarantismo, ou garantismo hiperbólico monocular, definindo-o como uma exacerbação do direito de defesa. E propõe, em contraponto, o que chamam de garantismo integral. Pode explicar melhor?

Acaba preponderando no Brasil uma corrente chamada de garantista, onde se defende que os direitos dos réus devem ser integralmente respeitados.

Até aí todos nós concordamos. Não serve só para punir, mas para limitar a punição. O que se desenvolveu no Brasil foi o que alguns chamam de hipergarantismo. É um garantismo hiperbólico, porque exacerbado, e monocular, porque só olha os direitos do réu, e não o direito da sociedade.

O que o sr. defende, então?

Um garantismo equilibrado, integral, que garanta os direitos dos réus, mas também os das vítimas e os da sociedade.

Há fortes argumentos contrários a esse conceito do “hipergarantismo”. Um deles é que o garantismo está lastreado na Constituição de 1988, que consolidou os princípios “in dúbio pro reu” e da presunção da inocência.

O hipergarantismo é uma interpretação do que está na Constituição.

O sr. defende, no seu livro sobre as provas, que o princípio da boa fé deve ser valorizado. Acontece que não está constitucionalizado, enquanto o da presunção de inocência está, e deve, portanto, prevalecer. Ou não?

A boa fé é algo inerente ao sistema de provas ilícitas, que o Brasil importou dos Estados Unidos. Só que quando a gente importou esse sistema, só importamos a metade que protege o réu.

A sua posição relativiza o constitucional “in dúbio pro reu” – o que é muito perigoso em um sistema democrático. Não?

Eu aprendi nos Estados Unidos um argumento que se chama slippery slope, ladeira escorregadia: “se você encosta em mim, daqui a pouco me dá um tapa e daqui a pouco um tiro”. Mas a questão é: esse slippery slope procede? Será que não há barreiras entre esse tocar na pele e o tiro? Nesse caso não existe.

O sr. defende, claramente, a relativização do princípio da presunção da inocência.

Não. Digamos que você me dê essa caneta de presente. Eu vou dizer que você relativizou o direito à propriedade?

Desculpe, mas não é uma boa comparação...

Direito à propriedade é um direito fundamental, que são irrenunciáveis e inalienáveis. O que você fez foi compatibilizar um direito inalienável e irrenunciável, com outro direito inalienável e irrenunciável, que é o direito à liberdade. Aí é que está a chave para entender o que a gente defende. Ninguém é contra a Constituição. / LUIZ MAKLOUF CARVALHO

O Estado de São Paulo, n. 45036, 05/02/2017. Política, p. A7