Projeto coloca em risco independência dos agentes públicos

Eros Roberto Grau*

 31/03/2017

 

 

O Projeto de Lei do Senado número 280/16 define “crimes de abuso de autoridade, cometidos por membro de Poder”, referindo – entre os seus sujeitos ativos – os membros do Poder Judiciário e do Ministério Público.

Não vou me deter na análise de seus preceitos.

Permitam-me que, após a sua atenta leitura, eu reaja simplesmente como uma pessoa prudente.

Pois não me cansarei de reiterar que a interpretação da Constituição e das leis não é ciência, mas prudência – o saber prático, a phrónesis a que se refere Aristóteles. O homem prudente é aquele capaz de deliberar corretamente sobre o que é bom e conveniente para o homem. A prudência não é ciência nem arte, porém virtude capaz de discernir o que é bom ou mau para um ser humano. É razão intuitiva que não discerne o exato, porém o correto. Por isso mesmo os juízes praticam a juris prudentia, não uma juris scientia.

A problematização dos textos normativos não se dá no campo da ciência. Operase no âmbito da prudência. Na ciência, o desafio de no seu campo existirem questões para as quais ela (a ciência) não é capaz de dar respostas. Na prudência, a existência de múltiplas soluções corretas para a mesma questão.

Dá-se na interpretação de textos normativos algo análogo ao que se passa na interpretação musical. Não há uma única interpretação correta (exata) da Sexta Sinfonia de Beethoven: a Pastoral regida por Toscanini, com a Sinfônica de Milão, é diferente da Pastoral regida por von Karajan, com a Filarmônica de Berlim. Não obstante uma seja mais derramada, a outra longilínea, as duas são autênticas, corretas.

Daí a inexistência de uma única resposta correta para todos os casos jurídicos – ainda que os juízes estejam permanentemente vinculados pelo sistema jurídico. Essa resposta verdadeira (única correta) não existe. A alternativa verdadeiro/falso é estranha ao Direito.

O projeto de lei do Senado ignora que a moldura da norma jurídica contempla, em cada caso, para uma mesma questão, inúmeras soluções corretas. Enseja a configuração de divergências na interpretação das leis e na ponderação de fatos e atos como expressão de abuso de autoridade. Coloca em risco a independência funcional de todos os agentes públicos, sem exceção. Finda por limitar, restringir a ação do Ministério Público e do Poder Judiciário.

A tipificação da hermenêutica como crime aterroriza. A confusão entre interpretação das leis e dos fatos e abuso de autoridade me estarrece.

Na minha idade costumo recorrer a Santo Tomás de Aquino, com quem muito aprendi, na leitura da Suma Teológica. Lá, onde o velho Tomás ensina que, quando julga, o juiz deve formar sua opinião não pelo que sabe como pessoa privada, mas pelo que vem ao seu conhecimento como pessoa pública, segundo os dados de cada processo.

É mesmo assim! Soa em meus ouvidos aqui, agora – noite e dia – o que, no seu tempo, o velho Cícero gritou: o tempora! o mores!

 

*É ADVOGADO E PROFESSOR TITULAR APOSENTADO DA FACULDADE DE DIREITO DA USP

 

 

O Estado de São Paulo, n. 45090 , 31/03/2017. Política, p. A8.