Título: A realidade inerte da fome
Autor: Sassine, Vinicius
Fonte: Correio Braziliense, 11/12/2011, Política, p. 2/3

Independência, mas a mãe desistiu da ideia. A catadora de papel trabalha há 25 anos nos fundos do Senado, num acampamento miserável. E nunca quis assistir às comemorações do Dia da Independência na Esplanada dos Ministérios, a poucos metros dali. "Eu não acho bonito. Acho bonito o desfile do Nordeste." Francisca não sabe sua idade, nem o nome da cidade onde nasceu. Analfabeta, não consegue ler as informações em sua Carteira de Identidade, cuidadosamente guardada por ela. O documento traz os registros de sua existência: Francisca Pedro da Silva, nascida em Cajazeiras, na Paraíba, no dia 7 de setembro de 1949.

O Correio esteve pela primeira vez com Francisca nos primeiros dias de janeiro, para uma reportagem sobre as famílias extremamente pobres situadas no quintal da presidente Dilma Rousseff. O jornal mostrou a realidade de pessoas que se instalaram a poucos metros dos centros de decisão política, como o Congresso Nacional, o Palácio da Alvorada, o Palácio do Jaburu e a Granja do Torto — onde está a residência oficial adotada por Dilma na transição de governo e no início do mandato. Nos percursos da presidente por Brasília, essas famílias lembram a urgência do compromisso de erradicação da miséria. Na semana passada, o Correio voltou aos mesmos lugares e constatou que a ação do Estado ainda é uma utopia. Ninguém apareceu. A situação é ainda mais dramática.

Em janeiro, a principal preocupação de Francisca na invasão da garagem do Senado era amealhar uma quantidade de papel branco suficiente para garantir o dinheiro das refeições básicas. Hoje, a dificuldade da catadora de papel é a mesma, com um agravante: "Os "pedreiros" não me deixam juntar papel." "Pedreiros" são usuários de crack, a droga que tomou conta da invasão aos fundos do Senado. Francisca não quer ver os netos nem um dos filhos na invasão. Segundo ela, seus familiares trocam até as panelas pelo crack. "Um filho meu é "noiado", me dá muito trabalho. E não coloquem meus netos na minha frente. Eles vivem me roubando."

A invasão está menor. O mato alto toma conta de boa parte do espaço, ocupado por menos famílias, praticamente todas elas ligadas a Francisca. As filhas que não vivem na invasão têm procurado mais a mãe. "Quando a fome bate, elas aparecem", diz Francisca. No primeiro ano do Brasil Sem Miséria, o poder público não enxergou a catadora de papel. Ela diz não ter sido procurada por nenhum agente público e não ter recebido nenhum tipo de benefício, como o Bolsa Família. "Se eu recebesse dinheiro do governo, não estaria nesse inferno." Com a Carteira de Identidade, Francisca — que já trabalhou como empregada doméstica — guarda sua Carteira de Trabalho. O documento está vazio. Nunca foi assinado.

A família cresce O acampamento aos fundos do Palácio do Jaburu, residência oficial do vice-presidente da República, Michel Temer, também encolheu. Muitas famílias de catadores de papel abandonaram o local. Luiz Carlos Paes da Rocha, 22, e a mulher, Rosicleide Oliveira, 17, permaneceram separando o material reciclável. Os dois se conheceram no acampamento, onde tiveram a primeira filha. O segundo filho está a caminho: Rosicleide está grávida há sete meses. É praticamente a única novidade desde os primeiros dias de janeiro, quando o Correio os localizou.

O casal continua trabalhando sem autonomia. Recebe R$ 100 por semana para separar os resíduos coletados por um catador proprietário de uma carroça. "O governo não quer saber da gente. Ninguém apareceu aqui. A gente continua sem galpão", diz Rosicleide. Quando o Correio esteve com ela, na tarde de sexta-feira, o marido buscava água "naquele prédio redondo". É a sede da Procuradoria Geral da República. Luiz Carlos usa a água de uma torneira fora do prédio.

Na Granja do Torto, uma das moradoras da Vila Operária — o bairro mais pobre da região — entrevistadas em janeiro pelo Correio está presa. "O irmão dela estava envolvido com drogas. Minha mãe foi de "laranja"", conta um de seus filhos, que mora com o avô na casa da Vila Operária. O pagamento do Bolsa Família foi suspenso desde então.

Na casa de Maria dos Santos Valente, na Vila Weslian Roriz (também na Granja do Torto), a vida melhorou um pouco desde janeiro. Um de seus netos, que tem atrofia muscular, passou a receber um salário mínimo do benefício de prestação continuada (BPC), destinado a pessoas com deficiência. "O dinheiro vai quase todo para o tratamento", diz Maria. Uma de suas filhas conseguiu emprego de empacotadora num supermercado. Também recebe um salário mínimo. Por problemas de saúde, Maria deixou de catar latinhas de alumínio. "Tem noites em que eu sonho com as latinhas." (VS)