Justa causa 

Fábio Medina Osório 

27/01/2017

 

 

Todos se lembram do debate sobre os efeitos do recebimento de uma denúncia penal contra o presidente do Senado. Chamou a atenção, por ocasião das discussões no plenário do STF, na ação penal recebida contra o presidente da Câmara Alta, que alguns ministros da Suprema Corte manifestassem muitas dúvidas e externassem que havia apenas “leves indícios” para acusar aquela autoridade pela prática de crimes. Houve votos vencidos que indagaram: por qual motivo o procurador-geral da República, em sete anos, não exauriu as investigações? Prevaleceu, todavia, a tese de que aquela etapa procedimental seria regida por um olhar mais superficial do Judiciário, instaurando-se o processo. Sabemos perfeitamente a crise que se seguiu com o posterior afastamento do presidente do Senado em decorrência de ter se transformado em réu num processo.

Essa lógica, pautada pelo princípio in dubio pro societate, está defasada e deve ser repensada. A condição de réu é algo muito importante e que produz relevantes reflexos jurídicos, políticos e sociais. Digo isso há muitos anos.

As ações penais e de improbidade em muito se assemelham pelo rito aplicável, e pelo regime jurídico do sistema punitivo. Aos processos de improbidade se aplica o regime jurídico do Direito Administrativo Sancionador, e aos processos criminais o regime de Direito Penal. Os dois tipos de ações estão submersos no devido processo legal punitivo constitucional e ao crescente tratamento unitário do jus puniendi estatal no ciclo punitivo (acordos de leniência, delações premiadas, persecução judicial integrada, investigação interinstitucional etc.).

Não por outra razão, determinados atos ilícitos necessitam de atuação coordenada entre as diferentes instituições investigativas, de modo a ensejar respostas coerentes e harmônicas, para reprimir crimes, atos de improbidade administrativa ou infrações à ordem econômica, ao mercado de capitais, ao sistema financeiro nacional, e assim por diante. São muitas as autoridades e instituições envolvidas nessas investigações e operações que culminam em processos punitivos.

A teor do rito, para ficarmos na especulação sobre ações de improbidade e penais, em ambas as espécies é necessário um juízo de filtro a respeito da justa causa para o recebimento dessas ações. Mas o que vem a ser considerada justa causa?

A justa causa é precisamente o conjunto de elementos concretos aptos a desencadear um juízo de verossimilhança em relação à pretensão punitiva estatal. Veja-se que o processo, em si mesmo, já significa uma penalidade ao acusado, com elevados custos à sua reputação e também um ônus aos contribuintes.

Nesse contexto, há que se perceber que o Judiciário brasileiro carrega aproximadamente cem milhões de processos, e a tendência é a lentidão. Daí a necessidade de que, na esfera punitiva, em que as autoridades detêm amplos poderes investigatórios, só se desencadeiem processos sancionadores quando baseados em elementos plausíveis e verossímeis, aptos a gerar resultados exitosos.

Não se compreende, portanto, o receio de que o Ministério Público ou demais instituições ajuizariam ações desprovidas de plausibilidade efetiva, calcadas em “leves indícios” ou em elementos precários, quando possuem amplos poderes nos inquéritos ou procedimentos investigatórios, além de manterem profunda relação com outras autoridades públicas.

Processos baseados em leves indícios não devem ser admitidos pelo Judiciário. O in dubio pro societate, na fase de recebimento da denúncia ou de uma ação civil pública de improbidade, há de ser repensado à luz do princípio da justa causa da ação punitiva, e tendo em conta os poderes investigatórios cada vez mais amplos das autoridades públicas. É hora de se redefinir as exigências para o recebimento de uma peça acusatória nesse cenário, pois nada impede que as autoridades prossigam em suas investigações exaustivamente, até que esgotem o conhecimento da matéria, antes de submeter alguém ao constrangimento do processo judicial.

Um sinal dos novos tempos é a quantidade de medidas cautelares que muitas vezes são requeridas em processos punitivos, tais como prisões preventivas, bloqueios patrimoniais ou quebras de sigilos. Essa tendência de exacerbação das cautelares realça que os processos exigem robustez de elementos de convencimento também para sua instauração.

Fábio Medina Osório é presidente do Instituto Internacional de Estudos de Direito do Estado e foi ministro da Advocacia-Geral da União

O globo, n. 30489, 27/01/2017. Artigos, p. 15