Juízes do Brasil resistem em aplicar penas alternativas
Tiago Dantas
22/01/2017 
 
 
De cada dez condenados, apenas três cumprem medidas sem restrição de liberdade; falta de fiscalização desestimula aplicação, diz especialista

Prevista em lei há 18 anos, a aplicação de penas alternativas para crimes cometidos sem violência ainda não foi suficiente para diminuir a ocupação das penitenciárias no Brasil. A cada dez pessoas condenadas por tribunais estaduais em 2015, só três receberam esse tipo de punição, segundo os dados mais recentes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), enquanto sete foram para a cadeia. Especialistas dizem que os juízes, de forma geral, resistem em utilizar a medida em casos como os de pequenos traficantes e estimam que uma nova postura de magistrados poderia reduzir a população carcerária em até 20%.

Além de não ter cometido um crime violento, o réu precisa ser primário para que sua pena seja convertida em uma das alternativas ao aprisionamento, como prestação de serviços comunitários, pagamento de multa, comparecimento a cursos ou impedimento de sair de casa em determinados dias e horários. Para cumprir a pena em liberdade, a condenação também não pode ser maior do que quatro anos.

Em países da Europa, a proporção de penas restritivas de direitos no universo de condenações é o oposto do que no Brasil. Na Inglaterra, por exemplo, análise dos julgamentos realizados em 2014 mostra que em 79% dos casos réus receberam penas alternativas e em 20% eles foram para a cadeia. Segundo estudos ingleses, a taxa de reincidência é maior do que se o condenado estivesse na prisão.

Enquanto a porcentagem de sentenças com as chamadas penas restritivas de direito ficou estável entre 29% e 34% desde 2009, de acordo com o CNJ, a população carcerária aumentou 28,3% no período, segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias.

— Se as medidas alternativas fossem mais aplicadas, principalmente para crimes relacionados ao tráfico de drogas, daria para tirar muita gente da prisão — afirma a professora de Direito Penal da FGV-SP Maíra Zapater. — Prender muita gente não deu bons resultados para combater a violência até agora. Basta ver a situação em que estão os presídios. E aplicar uma pena alternativa não é perdoar o criminoso. É uma forma de punir e educar alguém que cometeu um crime, mas não é violento nem reincidente.

Em julho do ano passado, por exemplo, um morador de Santos, no litoral de São Paulo, foi condenado a prestar serviços comunitários por dois anos e a pagar uma multa de um salário mínimo, que seria revertida a uma entidade de caridade. Ele foi acusado de ser o destinatário de um pacote com 520 gramas de haxixe enviado da Espanha pelos Correios. O caso é uma exceção, segundo especialistas. Segundo Maíra, a maior parte dos crimes que envolvem pequenas quantidades de drogas são julgados “em menos de 15 minutos, aos montes” e terminam, na maioria dos casos, com a prisão do réu.

— Os juízes preferem mandar para a prisão o pequeno traficante porque não confiam no cumprimento da pena alternativa. Mas, o que acontece? Isso acaba alimentando as facções criminosas que estão dentro da cadeia. O pequeno traficante vai para a prisão e não sai mais do crime — afirma o jurista Luiz Flávio Gomes.

O tráfico de drogas é responsável por 28% da população carcerária, segundo o Ministério da Justiça. Relatório recente da ONG Human Rights Watch apontou que a falta de um critério claro para distinguir usuário de traficante na Lei de Drogas contribui para o aumento do aprisionamento. A definição é feita de forma circunstancial ou subjetiva e um dos pontos levados em conta pelo juiz é o testemunho do policial responsável pela prisão.

De acordo com Gomes, em muitos casos um usuário de drogas acaba recebendo o mesmo tratamento penal que alguém que chefia toda uma rede de compra e venda de entorpecentes.

— O pequeno traficante se enquadra na lei de penas alternativas porque comete um crime sem violência. Poderíamos tirar 20% da população carcerária se fizéssemos isso e deixássemos só o grande traficante na prisão. Para combater o crime organizado, é preciso desmantelar seu poder econômico — opina o jurista.

Nem todos concordam que a aplicação de penas alternativas irá reduzir a população carcerária. O juiz da Vara de Execuções Penais de Natal, estado que foi palco de rebeliões e mortes de dezenas de presos na última semana, Henrique Baltazar dos Santos, acredita que a maior parte dos presos cometeu crimes violentos:

— O número de crimes aumentou, principalmente o de crimes violentos. Esse discurso de que deve ter outra pena para quem pratica crimes mais leves não tem efeito porque, na verdade, essas pessoas já não estão presas. Só acontece quando esses crimes se repetem. O estelionatário para chegar a um regime fechado tem que ter praticado, condenado muitas vezes. Esse discurso não tem resultado.

FURTO É PRINCIPAL CAUSA DE PENA ALTERNATIVA

Hoje, os processos que mais rendem penas alternativas são os de furto, porte ilegal de arma, estelionato, injúria, difamação e crimes de trânsito, segundo pesquisa realizada pelo GLOBO em dez tribunais estaduais do Brasil.

Especialistas argumentam que a fiscalização ainda é um entrave para o cumprimento das medidas alternativas. Cabe aos governos estaduais montarem estruturas capazes de assegurar à Justiça que o condenado fez o serviço comunitário devido, por exemplo.

— A fiscalização é importante para que a sociedade tenha certeza de que a pessoa foi penalizada pelo que fez de errado. A medida tem que provocar uma consequência para o condenado pensar duas vezes antes de cometer um crime — afirma a juíza Juliana Trajano de Freitas Barão, da 5ª Vara de Execuções Criminais de São Paulo, que tem a responsabilidade de avaliar o cumprimento das medidas. (Colaborou João Carlos Silva)

O globo, n. 30484, 22/01/2017. País, p. 6