'Fui apegado à vida"
Marco Grillo
21/01/2017
 
 
Em entrevista inédita, ministro do Supremo criticou discussões entre colegas do STF, defendeu votos no mensalão e lembrou dos tempos da ditadura

Calmo e sereno, em suas próprias palavras, Teori Zavascki já teve seus momentos de fúria, mas foi longe dos tribunais, numa quadra de futebol em Chapecó (SC), quando o jovem Teori se envolveu em uma confusão após um jogo contra o principal rival. “O Explosivo” era o sugestivo nome do time fundado pelo então futuro ministro e os amigos de escola. “O primeiro clássico foi um desastre, acabou em pancadaria e acabaram-se os dois times”, lembrou o magistrado, em entrevista inédita, parte do projeto “História Oral do Supremo”, da FGV Direito Rio. Na conversa, que aconteceu em agosto de 2014, o ministro, morto em um acidente aéreo na quinta-feira, relembrou as duas vezes em que recusou assumir cargos em Brasília, quando era advogado do Banco Central, e as reuniões de trabalho informais organizadas por Ellen Gracie na Serra Gaúcha, quando ambos eram juízes do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4). Teori também criticou as discussões acaloradas entre ministros do STF durante as sessões e lembrou do dia em que se despediu do Superior Tribunal de Justiça (STJ): “Eu nunca fui apegado a cargo, mas eu fui apegado à vida. A gente passa coisas boas e quando a gente vai para frente, vai deixando um pouco de si mesmo nos baús da história. É isso que emociona”.

DISCUSSÕES NO STF

Esse foi um momento (votação dos embargos infringentes do mensalão) que teve algumas discussões, para usar a expressão “sanguíneas”. Quer saber a minha opinião sobre essas discussões sanguíneas? Eu acho que isso não fica bem para o tribunal. Principalmente para o Supremo, televisionado ao vivo, acho que não fica bem.

JULGAMENTO DO MENSALÃO

Eu participei desse julgamento na fase final (Teori participou, em 2014, das votações de embargos infringentes, recursos que foram apresentados por réus condenados no julgamento). Sinceramente, eu não tenho razões para acreditar que tenha sido um julgamento político, no sentido de que vamos condenar ou vamos absolver porque quero condenar ou porque quero absolver. Provavelmente, se eu tivesse participado, algumas coisas eu teria votado diferente do que foi (decidido pela maioria). Vou dar o exemplo do que acabei votando. Em relação ao crime de lavagem de dinheiro e ao crime de quadrilha, eu acho que na formulação teórica, eu teria votado diferente do que foi decidido. Mas depois disso nos embargos infringentes inverteu-se justamente por isso (oito réus foram absolvidos pelo crime de formação de quadrilha, e um foi absolvido da condenação de lavagem de dinheiro, na fase dos embargos). Agora dizer que por causa disso foi político ou não, não posso dizer isso.

STF AO VIVO

Acho que ela (transmissão ao vivo das sessões) compromete, em muitos casos, a qualidade dos julgamentos. Porque, de um modo geral, já é difícil um juiz de tribunal voltar atrás nas suas convicções, mesmo quando um argumento de um colega seja muito convincente. Há uma natural resistência. E na frente da televisão, mais difícil ainda.

DEBATES INFORMAIS NO STF

A cultura do Supremo não é muito favorável a isso. De um modo geral, no STJ o ambiente é mais propício. Talvez porque não esteja sendo transmitido, pode ser. A gente troca ideias eventualmente com algum colega (no STF), mas por enquanto não é da cultura. Acho que está se dando alguns passos para mudar isso. Mas tudo isso depende muito das relações, depende muito dos colegas.

CONVITE PARA O SUPREMO

Estava em Paris quando me ligaram, dizendo que a (então) presidente (Dilma Rousseff ) queria falar comigo. Eu cheguei (a Brasília) num sábado, e no domingo eu fui no Palácio da Alvorada, e ela me convidou. Não se falou em mensalão em nenhum momento. A presidente tem uma visão do STF que eu achei importantíssima, tem uma visão de altíssimo nível. Ela disse que estava me indicando porque gostaria de uma pessoa tranquila, que tivesse uma experiência de juiz, que fosse técnico.

ESCOLHA DURANTE O MENSALÃO

Ninguém num primeiro momento falou: “Ele foi escolhido por causa do mensalão”. Bom, mas aí tinha o problema, estava no período eleitoral, era setembro, e o Senado que tinha que fazer a sabatina, então eles queriam fazer antes dos tais recessos brancos. Então houve lá na Comissão de Constituição e Justiça um processo para fazer logo a sabatina. Isso começou a ser ligado com o problema: “Estão querendo nomear logo porque vai participar do mensalão”. E aí não adiantava dizer que eu não podia participar desse julgamento porque ele já tinha começado. Insistiam. Está no regimento interno do Supremo: o juiz, quando começou o julgamento, só pode votar se der empate, e desde que se sinta habilitado. Em matéria penal, que era o caso, tinham dez juízes, e se der empate, essa hipótese não acontece, porque está lá também no regimento e na lei, que se der empate favorece o réu, então não tem hipótese de eu votar no mensalão. E foi isso que aconteceu, eu não participei do julgamento. Eu assumi, não tinha terminado, eu nem ia lá na sessão. Mais adiante, quando surgiram os embargos infringentes, aí foi pior: “Foi escalado por causa dos embargos infringentes”. Eu fui indicado no começo de setembro, ninguém imaginava embargos infringentes, porque dependiam de ter quatro votos pela absolvição. Isso aconteceu só em outubro, novembro, não podia alguém em setembro imaginar que eu fosse escolhido para dizer que cabiam embargos infringentes, com quatro votos lá na frente. Também não adianta explicar.

DETIDO NA DITADURA

Eu morava numa república, num apartamento com mais quatro colegas. Alguns mais engajados (politicamente) do que eu. Pelo apartamento passavam, de vez em quando, alguns clandestinos, mas eu não sabia quem era nem quando chegaria nem quando sairia. Então, a gente se engajava lateralmente. Isso foi por um bom tempo, até que um dia um desses abrigados foi preso, torturado, e ele tinha uma chave no bolso e era a chave do apartamento. A polícia bateu lá e nos levou a todos, num sábado de noite. Ficamos detidos 24 horas, interrogados. Eu cheguei em casa e abri a porta e estava a polícia lá com metralhadora. Então eles me levaram. Me lembro, era um fusquinha, obviamente sem nenhuma identificação. Claro que a gente sabendo das histórias que estavam acontecendo nos porões (da ditadura militar), a gente se assusta. E chegando lá no Dops, chegamos num corredor, me lembro de ter sido empurrado, eu bati com a cabeça num extintor de incêndio.

CONVIVÊNCIA COM ELLEN GRACIE

A Ellen (Gracie, ex-presidente do STF) era uma grande administradora, aliás, ela fez uma bela gestão no Supremo também. E ela tinha coisas assim, a gente, por exemplo, se reunia, os juízes. A Ellen levava a gente lá para a Serra (Gaúcha), ela tinha lá um convento, era convento mesmo, a gente ia lá, ia sem a família, não iam os cônjuges. Os juízes ou juízas ficavam dois dias lá trabalhando, informalmente, mas trabalhando, fora do ambiente formal, ia com uma pauta, discutia. A única colher de chá que a Ellen nos dava é que de noite pagava um jantar numa cantina da Serra. Então a gente tomava as decisões lá e depois voltava e formalizava numa sessão normal. Mas as coisas a gente discutia e chegava mais ou menos a consensos em reuniões assim, de trabalho em fim de semana.

PANCADARIA NO CLÁSSICO

Nós tínhamos uma dissidência lá porque nós tínhamos muita garra e pouca técnica, então tinha um grupo que não era escalado na seleção principal (do colégio), então nós fundamos (o time de futebol). “O Explosivo" foi formado pelos remanescentes, mais ou menos reservas da seleção do colégio, mas nós tínhamos muita garra, e imediatamente nossos adversários fundaram “O Extintor". O primeiro clássico foi um desastre, acabou em pancadaria e acabaram-se os dois times.

DESPEDIDAS

Eu sou muito de chorar, eu choro com facilidade. Eu chorei quando saí do TRF. Eu me lembro sempre do (exsenador José Paulo) Bisol, acho que falei isso naquele meu discurso (de despedida do STJ), Quando ele (Bisol) fez o discurso de despedida no Tribunal de Justiça, fez um discurso belíssimo, dizendo isso: quando a gente se despede, a gente está se despedindo de si mesmo. Aquele Teori, ministro do STJ, acabou-se, foi embora. Então a gente se despede um pouco de si mesmo, isso que emociona. Eu nunca fui apegado a cargo, mas eu fui apegado à vida. A gente passa coisas boas e quando a gente vai para frente, vai deixando um pouco de si mesmo nos baús da história. É isso que emociona.

O globo, n. 30483, 21/01/2017. País, p. 6