Título: Desafios à dama
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Fonte: Correio Braziliense, 11/12/2011, Mundo, p. 22

Dívida externa astronômica, inflação em alta e crise com os Estados Unidos devem marcar o segundo mandato de Cristina Kirchner. Presidente pode reforçar o poder e aumentar o controle sobre a imprensa Carolina Vicentin

Cristina Kirchner tornou-se, oficialmente, a mulher mais poderosa da Argentina em quase 40 anos. Com ampla maioria na Câmara e no Senado, e com o apoio de boa parte dos governadores, a presidente argentina começa o segundo mandato em posição confortável. Mas a vida não deve ficar muito fácil para ela, à frente do chamado "cristinismo" — uma evolução do kirchnerismo, termo cunhado para seu falecido marido, o ex-presidente Néstor Kirchner. Conhecida pela postura sedutora e autoritária, Cristina terá de lidar com uma dívida externa astronômica, brigas com sindicatos e uma inflação que pode chegar a 30% no ano que vem. Nessa cruzada, analistas acreditam que ela aproveitará as vantagens políticas conquistadas na última eleição para dar a si mesma mais liberdade e poder.

A grande batalha econômica da presidente argentina começou ainda no mês passado, quando ela aprovou cortes nos subsídios para os setores de energia e de transportes. O governo investia muito nessas áreas e, com a decisão, vai perder um pouco do caráter intervencionista. "Aparentemente, o novo mandato terá um afrouxamento nesse sentido. Percebemos isso pela escolha do novo ministro da Economia, Hernán Lorenzino, uma cara jovem que tem a visão mais voltada para o mercado", observa o professor Aldo Fornazieri, diretor acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. A escolha de Lorenzino também indica a disposição de Cristina para melhorar a credibilidade financeira do país diante da comunidade internacional.

"Um dos maiores desafios será melhorar a confiança dos investidores, por meio de um acordo com o Clube de Paris e com os credores da dívida pública que ganharam ações na Justiça", afirma Mark Jones, pesquisador de América Latina e chefe do Departamento de Ciência Política da Rice University, no Texas. Desde a moratória, em 2001, a Argentina acumulou mais de US$ 9 bilhões em dívidas com o Clube de Paris, organização informal de nações que prestam ajuda financeira a outros países. Cristina também terá de restabelecer a amizade com os Estados Unidos. No começo deste ano, o governo argentino interceptou um avião norte-americano que chegou a Buenos Aires, com a justificativa de que a aeronave estaria carregada com armas e drogas — o que, mais tarde, foi desmentido. "As relações com os EUA estão completamente estremecidas, e Cristina precisa trabalhar isso. Se pretende voltar aos mercados, ela terá de negociar com o governo norte-americano", diz o brasileiro Aldo Fornazieri.

Além de restaurar a imagem financeira do país, Cristina deve aproveitar os próximos quatro anos para sair, definitivamente, da sombra de Néstor Kirchner. Embora continue observando luto e mantenha as linhas gerais da política do marido, a presidente deve fortalecer sua identidade como líder. "Já houve uma mudança na base do poder: Néstor se apoiava mais no peronismo clássico (baseado em governadores e prefeitos) e no sindicalismo, enquanto Cristina prefere os jovens e rejeita os poderes tradicionais, principalmente o dos sindicatos", destaca Jorge Liotti, professor na Universidade Católica Argentina (UCA) e editor de política do jornal Perfil.

Liderança Em comum, Néstor e a sucessora têm a valorização da liderança personificada. O pesquisador Mark Jones acredita que essa noção fará com que a presidente lute na Câmara e no Senado pela ampliação dos poderes do Executivo. "Mais do que qualquer outra coisa, Cristina vai usar a maioria governista para aprovar uma legislação que delegue grande poder e flexibilidade a seu cargo, permitindo que governe com relativa autonomia", diz Jones. As consequências disso seriam a ampliação das leis de emergência e das regras que permitam à Presidência fazer alterações no orçamento sem consulta parlamentar.

A confortável posição de Cristina lhe permite, ainda, maior controle sobre o que é dito pela imprensa. Desde o primeiro mandato, a presidente tem trocado farpas com dois dos maiores grupos de comunicação, o Clarín e o La Nación. Constantemente, a população se envolve nas discussões, muitas vezes acusando os veículos e os jornalistas de mentirosos. "A relação entre o governo e a imprensa é de hostilidade mútua. O governo busca tirar o poder dos meios de comunicação e, em grande parte, já conseguiu atingir esse objetivo", avalia Jorge Liotti. Há também uma grande divisão no país. "As empresas estão totalmente separadas entre as oficialistas, que cresceram muito nos últimos anos, por conta do aporte de publicidade do governo, e as críticas. Só alguns poucos mantêm uma linha intermediária", aponta.

As grandes empresas jornalísticas se indignaram com a aprovação da nova Lei dos Meios, no ano passado. Ela determina, entre outras coisas, que o espectro de radiodifusão seja dividido não só entre as companhias tradicionais, mas também entre organizações que pratiquem o jornalismo militante, defensor de causas. E o conflito deve ficar ainda mais ácido daqui para a frente. "Se Cristina levar adiante a ideia de estatizar a Prensa Papel (empresa que fornece papel para os jornais), terá forte poder de barganha e um meio de controle físico da imprensa", alerta o professor Fornazieri.

Índice mascarado A inflação oficial da Argentina é medida pelo Instituto Nacional de Estatística e Censo (Indec), uma espécie de equivalente ao IBGE brasileiro. A previsão para este ano é de que a taxa fique entre 9% e 9,5%. Só que esse valor não é real. Diversas consultorias privadas, e respeitadas, fizeram levantamentos paralelos e concluíram que o índice ficará entre 20% e 25% em 2012. O governo proíbe essas instituições de divulgar os números.