ENTREVISTA - Isaac Sidney Ferreira

Antonio Temóteo, Paulo Silva Pinto e Vicente Nunes

02/04/2017

 

 

Cobrar respeito das instituições financeiras a seus clientes é a principal tarefa do diretor de Relacionamento Institucional e Cidadania do Banco Central (BC), Isaac Sidney Menezes Ferreira. No cargo há nove meses, Ferreira entrou no BC em 2001 como procurador. Foi procurador-geral por seis anos.
 
Ferreira tem se reunido pessoalmente com ouvidores dos bancos para exigir melhora no atendimento a reclamações, que monitora de perto. Ressalta que o avanço passa por uma compreensão melhor do sistema por todos os envolvidos. “Bancarização sem educação financeira é um flerte com o risco de crédito. Por isso, o BC, por meio de parcerias com entidades públicas e privadas, tem procurado difundir ações de educação financeira em todo o Brasil. Mas esse é um trabalho de longo prazo, que requer foco e dedicação”, explica.
 
O BC espera que os brasileiros tenham acesso a juros menores após a limitação para o rotativo do cartão de crédito, medida que passa a vigorar  amanhã. A partir de 30 dias nessa linha de financiamento, a mais cara que existe, o cliente pagará os juros do parcelado. Todas as taxas, porém, precisam diminuir, afirma o diretor. “Elas ainda estão muito altas”.
 
Ferreira revela também que está em fase final o estudo para a medida que poderá permitir ao BC autorizar, quando bem entender, a entrada de bancos estrangeiros no país. Isso é hoje uma prerrogativa do presidente da República, que poderá delegá-la à insituição por meio de um decreto. A seguir, os principais trechos da entrevista que ele concedeu em seu gabinete, no 21º andar da sede da autoridade monetária.
 
Quatro em cada 10 pessoas que devem no cartão de crédito estão inadimplentes. As mudanças no rotativo do cartão mudarão essa realidade?
Nós fizemos recentemente duas mudanças que considero importantes nessa área. A primeira foi limitar o crédito rotativo no prazo máximo de 30 dias, uma medida de cunho prudencial para reduzir o risco de crédito. A segunda medida foi permitir a diferenciação do preço entre compras a prazo e à vista, e a depender do meio de pagamento. São exemplos de medidas que o BC, com o governo, está adotando para endereçar esse problema. Temos o diagnóstico do problema e o estamos enfrentando com medidas que possam, de forma estrutural e sustentável, levar a uma redução do spread (diferença entre os juros que os bancos pagam aos poupadores e os que cobram dos devedores).
 
As instituições financeiras divulgaram as condições que oferecerão para a clientela com as mudanças no rotativo. s taxas  seguem muito altas. Por ano, superam 200%. O BC tem a expectativa de que consiga reduzir o spread ?
A taxa do rotativo deverá se reduzir à metade para o bom pagador. 
 
Hoje o rotativo é de 481,5% ao ano. Metade disso ainda é enorme, não?
É uma taxa ainda enorme. O BC tem presente esse diagnóstico. Medidas microeconômicas estão sendo adotadas para que, no médio e longo prazo, possa haver uma redução sustentável.
 

 

E como o governo pretende enfrentar o problema?
Tão importante quanto falarmos de números é falarmos das causas do elevado spread bancário no Brasil. Sob pena de nós, não assim o fazendo, incorrermos em equívocos que aconteceram no passado. Entre 2011 e 2016, o spread bancário oscilou de uma taxa média mensal de 18% em 2011, a 14% em 2014. Depois, em 2016, ultrapassou o patamar inicial de 18% e chegou a 22,5%. É o que costumo chamar de spread iôiô ou bumerangue. O BC não quer mais isso. O que o BC quer é o spread que possa reduzir de forma sustentável e estrutural. Para isso, é importante que nós ataquemos não só as consequências, mas as causas. Não adianta apenas dar o remédio, porque o efeito vai passar e a febre vai voltar. O spread bancário faz parte de uma pauta histórica do BC. Eu estou aqui há 15 anos. Desde que assumi em 2001, o spread bancário faz parte da ordem do dia do BC.
 
E agora isso finalmente será resolvido?
Por que agora eu entendo que estamos no momento mais propício para endereçar as verdadeiras causas do spread bancário? Eu vou citar algumas dessas razões. Primeiro, nós estamos conduzindo uma política monetária de forma consistente, sólida e crível. Segundo, estamos em meio a um ciclo de distensão monetária desde outubro de 2016. Terceiro, estamos com um processo de desinflação mais difundido. O spread é elevado, até elevadíssimo quando comparamos com outras economias. Esse diagnóstico está presente no âmbito do BC. A discussão não é mais quando o spread deve cair, mas como ele deve cair. E o BC está empenhado nisso, tanto que lançou dois pilares na Agenda BC Mais: o sistema financeiro mais eficiente e crédito mais barato.
 
Mas o senhor mesmo falou que o spread esteve na agenda do BC há pelo menos 15 anos. Por que não caiu?
São causas históricas. Eu acho que, desta vez, não é só discurso e não creio que das outras vezes tenha sido apenas discurso. A conjuntura econômica deste momento é algo que fortalece e favorece as propostas que estão em curso.
 
O próprio parcelado do cartão de crédito, para onde o BC quer empurrar o consumidor, está batendo recorde, de 163,5% ao ano. Isso mostra a ineficiência da medida do BC ou não?
Não. Primeiro que a norma do novo rotativo está para entrar em vigor. Segundo, que nós não estamos adotando medidas voluntaristas nem simplórias. Nós estamos mexendo e adotando medidas que possam, no médio e longo prazo, e de forma estrutural, se sustentar. Eu quero crer que em relação ao parcelado, esse aumento foi marginal e tenho a expectativa de que, em março, e os dados parciais mostram, já devolvem esse aumento. Não vou precisar os dados ,porque não são divulgáveis. Mas os números parciais de que disponho em meados de março já nos mostram patamares que se aproximam de janeiro. Significa dizer que os dados de fevereiro não revelam uma trajetória. Não revelam uma tendência.
 
Como os spreads são calculados?
Há os custos administrativos, a carga tributária, a inadimplência e uma série de outros fatores. Os bancos dispendem 55,7% dos seus custos para cobrir calotes. Uma das causas da inadimplência é a falta de melhor qualidade das garantias. Outra é a insegurança jurídica dos contratos. Os bancos ocupam a terceira maior posição de litigantes no Brasil. Só nos Procons, no ano passado, foram registradas quase 600 mil reclamações, fora as 300 mil no BC. Outra causa da inadimplência é a falta de informações da capacidade de pagamento do tomador de crédito. Por isso estamos investindo na melhoria do marco legal do cadastro positivo. Os bancos hoje não detêm informações qualitativas sobre a capacidade do bom pagador. Acontece como no ditado que diz que “o justo paga pelo pecador”.  E, na hora de executar as garantias, os bancos enfrentam inúmeras instâncias judiciais para poder recuperar o bem, que se deteriora.
 
Aumentar a concorrência no setor seria uma dos caminhos para reduzir juros?
Estamos tentando criar um ambiente de melhor competitividade dos bancos. Por exemplo, com o ingresso de bancos estrangeiros. Estamos propondo que o próprio BC autorize o ingresso de bancos estrangeiros no país, não mais dependendo de opinião técnica do Ministério da Fazenda nem da autorização do presidente da República. Isso está em estudos. A ideia é que isso seja delegado pelo presidente ao BC. Assim, o processo se torna mais célere e nós nos alinhamos a práticas internacionais. Quando nós editamos normas que facilitam a transparência e a comparação de preços dos serviços bancários, isso permite ao consumidor escolher o banco com o qual ele quer lhe dar. Quando, lá atrás, nós padronizamos as tarifas bancárias, não tabelamos os preços. E é correto não fazermos isso. Mas nós dissemos o máximo que poderia ser cobrado nas tarifas específicas. Cerca de 20 tarifas. Significa dizer que eu sei quais são as tarifas e vou saber quais bancos cobram menos.
 
É possível contar com medidas que dependam de aprovação do Congresso Nacional em um momento em que se tenta aprovar a reforma da Previdência?
Essa agenda focada no crédito mais barato pode andar com a agenda prioritária do governo voltada para as reformas estruturais. E a maior parte da agenda microeconômica pode ser implementada por meio de medidas provisórias, resoluções do Conselho Monetário Nacional (CMN) e de circulares do BC.
 
O cadastro positivo, quando enviado ao Congresso, já previa que todos entrariam e só sairia quem pedisse. Isso foi alterado. O que o leva a crer que mudarão de ideia agora?
Nós estamos empenhados em convencer os parlamentares de que esse modelo aprovado acabou inviabilizando a efetividade do cadastro positivo.
 
A inadimplência não subiu e mesmo assim os juros aumentam. É possível contar com a colaboração dos bancos?
Posso lhe dar esse testemunho sobre a disposição dos bancos, sobre a postura colaborativa deles. Não adianta nós querermos fazer mudanças e baixar juros por decreto. Não podemos incorrer nos equívocos do passado. Como eu disse, o spread iôiô ou bumerangue não interessa a ninguém.
 
O senhor fala que agora temos uma política sólida. Isso não existia anteriormente?
Nós fechamos alguns anos recentes com inflações maiores do que temos hoje e estávamos com o ambiente macroeconômico mais deteriorado, sobretudo no âmbito fiscal. E tudo isso levou a um ambiente de maior desconfiança para o país. Hoje estamos caminhando para uma posição mais favorável no que diz respeito a esses indicadores. Não bastasse isso, concretamente, estamos efetivamente vivenciando um processo de desinflação que se consolida. Estamos em meio a um ciclo de afrouxamento monetário e isso nos faz enxergar um momento propício para endereçarmos as causas que fazem o spread ainda ser elevado.
 
Mas o BC tem culpa nesse processo. Foi leniente no combate à inflação entre 2009 e 2016. Em 2015, chegou a quase 11%. O consumidor está pagando por esse erro?
Eu vou me ater à administração atual, à qual eu pertenço e entendo que sempre, ao seu tempo, o BC cumpre o seu papel.
 
Sobre a concorrência, havia grande expectativa quando HSBC e Santander chegaram ao Brasil, mas o resultado foi frustrante. Quando teremos juros civilizados?
Penso que o momento é bastante propício para que as medidas nos levem a isso. Não é só retórica. Nós estamos vendo efetivamente o país com alguns sinais mais favoráveis. A confiança está sendo retomada, a inflação está sob controle. Estamos com uma política monetária consistente, sólida e crível, em meio a um ciclo de afrouxamento monetário. O risco Brasil está cadente, as reformas estruturais para o reequilíbrio fiscal estão sendo encaminhadas no Congresso Nacional. Já se aprovou a limitação de gastos públicos. A reforma da Previdência está sendo discutida com o parlamento. Outras reformas que permitem melhorar o ambiente de negócios estão sendo endereçadas, como a trabalhista e tributária. Há todo um esforço do governo para que, do ponto de vista estrutural, as principais causas de alguns problemas macroeconômicos possam ser endereçados. Então é preciso que nós possamos também dar um crédito para que as medidas sejam implementadas.
 
Os bancos oferecem produtos inadequados para os clientes? O rotativo, por exemplo, não é inadequado?
O que tem que acontecer no rotativo é cada vez mais a indução de boas práticas para uso consciente e responsável. As ações de educação financeira devem auxiliar o consumidor bancário a obter uma melhor disciplina financeira. Isso também deve contribuir para reduzir o risco de crédito e, consequentemente, diminuir a inadimplência e o comprometimento de renda das famílias.
 
Quando o mercado de crédito brasileiro ficará mais parecido com as economias civilizadas em termos de juros?
Isso é uma discussão que está relacionada ao juro estrutural da economia. E está relacionada com a própria macroeconomia do país. Eu tenho a impressão, e posso até dizer mesmo a convicção, de que, se essas medidas estruturais que estão sendo propostas pelo governo para o reequilíbrio fiscal e as medidas microeconômicas para melhoria do ambiente de negócios forem adotadas, nós teremos um ambiente propício para caminharmos para taxas que se aproximam de economias desenvolvidas.
 
O brasileiro precisa se educar financeiramente? Ele está aquém de suas necessidades?
Sim. Quando o brasileiro se educar financeiramente, ele se dará conta do empoderamento que terá conquistado para mudar a regra do jogo na relação com os bancos.  Bancarização sem educação financeira é um flerte com o risco de crédito. Por isso, o BC, por meio de parcerias com entidades públicas e privadas, tem procurado difundir ações de educação financeira em todo o Brasil. Mas esse é um trabalho de longo prazo, que requer foco e dedicação.
 
O BC precisa mudar?
Sim. O BC precisa tirar um pouco a gravata, precisamos ter uma linguagem mais próxima do cidadão, que atraia e cative mais o seu interesse. Tem muita coisa que precisa ser comunicada com a sociedade de forma mais interativa, como educação financeira, inclusão financeira, medidas de amplo alcance, como mudanças no cartão de crédito, troco, enfim, tudo isso precisa ser comunicado de forma muito simples e direta. Tão importante quanto um canal que permita ao consumidor reclamar contra bancos é franquear um canal que permita ao cidadão reclamar contra o próprio BC, isso porque queremos um BC mais próximo do cidadão, com coragem para debater e questionar nossa atuação.
 
Mesmo com juros altos, a poupança é baixa no Brasil. Isso é resultado da renda 
baixa ou da falta de disciplina para poupar?
Os brasileiros com menor faixa de renda têm um comprometimento maior do orçamento doméstico com o pagamento de serviços da dívida. E isso acaba a sua capacidade de poupar. Quanto maior for a disciplina financeira, quanto maior for a capacidade de planejamento financeiro do brasileiro, maior será a capacidade de poupar e de investir. Uma pesquisa da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), com a participação do Brasil, e fez a seguinte pergunta para 2,5 mil entrevistados: “Nos últimos 12 meses você poupou?” A resposta de 69% foi não.
 
O senhor mencionou os problemas fiscais que o país enfrenta e a possibilidade de melhora. No passado recente, como procurador do BC, o senhor defendeu a instituição nas chamadas pedaladas. Como o senhor vê essa questão do passado com os olhos do presente?
O BC é responsável por elaborar estatísticas fiscais abaixo da linha. E o Tesouro Nacional, acima da linha. As estatísticas fiscais que o BC divulga, elas se prestam para fins macroeconômicos, do ponto de vista da condução da política monetária. Interessa ao BC saber o nível de endividamento do setor público com o SFN (Sistema Financeiro Nacional). E, naquele momento, a Advocacia-Geral da União (AGU) queria entender como era a atuação do BC na divulgação das estatísticas fiscais. E em alguns momentos fui chamado a esclarecer exatamente como se dava essa atuação. E o fiz por meio de pronunciamentos jurídicos ou por meio de entrevistas coletivas. Portanto, essa foi uma atuação eminentemente técnica por parte do BC a partir de um porta-voz que era seu procurador-geral dizendo como o BC técnica e juridicamente fazia e faz suas estatísticas fiscais. Foi assim que se deu a minha atuação.
 
Como está o processo em que se discute a correção da poupança nos 
planos econômicos?
Isso está aguardando julgamento. O Supremo Tribunal Federal (STF) que está por decidir se as leis que instituíram os planos monetários são ou não são constitucionais. O BC atua como amigo da corte em todos os processos no STF e tem expectativa de que o STF declare a sua constitucionalidade. O que está em jogo é a capacidade de o Estado adotar políticas monetárias para enfrentar processos inflacionários. Nós temos, portanto, a expectativa de que, em algum momento, o STF possa julgar. Neste momento, o que está em curso são tratativas entre entidades de defesa do consumidor e a União, por meio da AGU e alguns bancos para um acordo que possa pôr fim a esse litígio na Justiça, que já dura mais de três décadas.
 
 
 
 
Correio braziliense, n. 19668, 02/04/2017. Economia, p. 8.