Nosso herói

Cristovam Buarque

11/04/2017

 

 

Diferentemente de outras cidades, em Brasília os heróis foram precursores: o urbanista que lhe desenhou, o arquiteto que projetou seus primeiros edifícios, o presidente da República que canalizou a vontade nacional para construí-la onde antes nada havia e, sobretudo, os anônimos operários candangos que a construíram. Nossos maiores heróis são os que estiveram na nossa pré-história, antes de nossa inauguração e consolidação.Mas, ao longo da história, um nome se destaca como nosso maior e quase herói: Honestino Guimarães. Por isto, Paixão de Honestino, da professora Betty Almeida, lançado no, aniversário dele, em 28 de março, em Brasília, é um magnífico presente de aniversário à nossa cidade e à nossa universidade que fazem aniversário em abril.Com uma linguagem criativa que brinca com o tempo, mudando de época sem parar ou perder o enredo, o livro emociona ao descrever a curta e intensa vida de nosso herói, de nossa cidade nos seus anos iniciais, sob o período de chumbo da ditadura, descrevendo também a vida na UnB, seus estudantes, professores, dirigentes, naqueles tempos, além da luta política de jovens na clandestinidade.Com maestria, a professora Betty nos faz viajar como se assistíssemos ao filme de um tempo em que muitos de nós, mais velhos ,vivemos, se não aqui, em outras partes do Brasil. Vemos desfilar nomes conhecidos como Gougon, Hélio Doyle, Maninha, Aylê-Salassié, Dad Squarisi e dezenas de outros que viveram a epopeia, os sonhos e a coragem da luta contra o monstro da ditadura. A professora Betty consegue nos passar como era a vida naqueles distantes anos dourados pelos sonhos da utopia e pelo estímulo da luta por um mundo melhor, com justiça, igualdade, liberdade, progresso.

Acima de todos paira Honestino como nosso herói brasiliense. Herói feito de sentimentos, de amores, crenças, certezas; seu carisma e energia contagiantes; sua coragem avassaladora; e talvez, acima de tudo, o mistério de seu desaparecimento em 10 de outubro de 1973, sem deixar rastro. Esse final agrega força ao mito e consolida seu heroísmo.Ele não foi o único a enfrentar a ditadura nem o único a sofrer prisão, tortura e morte, mas fez parte de um reduzido grupo que tinha formação ideológica, capacidade aglutinadora, energia mobilizadora. Sobretudo, é quase o único do qual não ficou o relato dos dias posteriores ao seu desaparecimento.A vida do Honestino, de apenas 26 anos, parece ter durado um século, com tempo para casar, ter a filha Juliana, viver clandestinamente em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, até desaparecer nesta cidade, onde morava: saiu de casa, não voltou, apenas isso se sabe com rigor. Ficamos sem a história real do que lhe aconteceu. A única certeza é de que morreu lutando, provavelmente nas mãos de torturadores.O livro de Betty Almeida nos envolve ao longo de todas suas páginas. Lemos como se vivêssemos aquele tempo, transitássemos entre aqueles personagens. Um livro clássico para nós brasilienses, especialmente os jovens. Mas também pensando qual seria o heroísmo dos jovens de hoje, quando as certezas não resistem muito tempo; já não há utopias nítidas a construir; já não somos engenheiros sociais.

Os heróis de hoje devem ser adeptos da dúvida; da utopia sempre em construção, sem desenho prévio; da luta sem risco de morte ou desaparecimento. Mas há outros propósitos: como fazer um país onde o filho do pobre trabalhador estude na mesma escola do filho do rico patrão; um mundo sem “mediterrâneos invisíveis”, separando excluídos e incluídos nos benefícios da modernidade; um Brasil sem corrupção no comportamento dos políticos, nem nas prioridades políticas.Qualquer que seja, a luta será por ideias novas, ainda a construir. Será como indicou Honestino na poesia escrita aos 18 anos de idade, transcrita pela professora Betty Almeida, onde ele diz: “Eu espero a festa do mundo inteiro, mas também eu a construo... Pois eu construo a festa cantando e lutando por um mundo liberto e igual”.(...)

 

 

Correio braziliense, n. 19677, 11/04/2017. Opinião, p. 11.