Com 95 mortos, Hartung vê 'sequestro' do ES
Miguel Caballero
09/02/2017
 
 
Estado repassa operação de Segurança para Forças Armadas; policiais civis entram em greve

O colapso na segurança no Espírito Santo chega ao hoje ao sexto dia não apenas longe de uma solução para a ausência da Polícia Militar nas ruas mas com o cenário agravado: a partir de hoje, boa parte da Polícia Civil fechará delegacias e reduzirá o ritmo de trabalho. E os PMs mantêm a paralisação — ocultada no movimento das mulheres de oficiais acampadas em frente aos batalhões. Os poucos que estão nas ruas viraram alvos: ontem à noite, três PMs foram baleados quando patrulhavam a pé o bairro de Flexal, em Cariacica. Nenhum corre risco de morrer.

Com tropas federais que chegarão a 1.850 homens na Grande Vitória (a Força Nacional de Segurança enviará mais cem hoje, e o Ministério da Defesa, 550), o governo estadual repassou formalmente a operação da Segurança Pública às Forças Armadas, mas as mortes não param. Até a noite de ontem, já eram 95, número informado pelo Sindicato de Policiais Civis (Sindpol), uma vez que a Secretaria de Segurança não divulgou ainda um balanço.

Licenciado após retirar um tumor da bexiga, o governador Paulo Hartung reassumirá na semana que vem. Ele falou ontem pela primeira vez na crise e fez um apelo emocionado (e não atendido) para que os policiais voltassem às ruas. Criticou também, duramente, a paralisação.

— É chantagem aberta, um método da vergonha. É sequestrar a liberdade do cidadão capixaba e cobrar resgate. Não se pode pagar resgate. Nem pelo aspecto ético, nem ameaçando a Lei de Responsabilidade Fiscal —disse Hartung, que participou de entrevista ao lado do governador em exercício, César Colnago.

Ele disse argumentou que repor, de imediato, as perdas salariais de policiais resultaria num custo de R$ 500 milhões:

— Alguém quer aumento de impostos?

De todos estes homicídios, apenas um, o do policial civil Mario Marcelo de Albuquerque, na terça-feira, foi esclarecido, com a prisão ontem de cinco suspeitos. Responsável pela investigação de assassinatos na Região Metropolitana de Vitória, o titular da Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), delegado José Lopes, relatou ao GLOBO a dificuldade para se apurar os responsáveis pelas execuções.

— Temos suspeitos, mas está difícil investigar nesta situação. Eu mando um policial para a rua investigar, mas não há ninguém para ele conversar. As famílias estão com medo, não dão informações. Por telefone, há muitos trotes — diz Lopes, que diagnostica um padrão nos assassinatos. — Muitos se aproveitaram da ausência da PM para acerto de contas, principalmente do tráfico. O cara tem o inimigo, vai lá e mata antes que seja morto.

INVESTIGAÇÃO CONFUSA

A rigor, o governo estadual não tem controle exato sequer sobre o número de homicídios. José Lopes revela que, apesar das 90 mortes, há apenas 35 casos sob investigação na DHPP desde sexta-feira.

— Não sei se são 80 e tantos como dizem. Houve casos de vários boletins feitos com o mesmo caso. Na DHPP, tenho 35 em andamento. Além desses, há os crimes de latrocínio (roubo seguido de morte), que vão para outra delegacia — disse, alertado que a contagem de corpos é feita no Departamento Médico-Legal. — Mas é possível que tenha caso de atropelamento que levam para lá.

A morte do policial civil foi o estopim para a categoria se espelhar na PM e iniciar um movimento de protesto. Nove associações de policiais civis, representando diversas funções da categoria (delegados, investigadores, peritos, entre outros), prometem fechar delegacias "por falta de segurança" e trabalhar apenas nas 18 delegacias regionais do estado, trabalhando apenas casos emergenciais.

Além da insegurança, os policiais civis reclamam de defasagem salarial. Durante ato ontem no pátio da sede da corporação, em Vitória, líderes das associações mostravam preocupação com a mobilização da categoria. A expectativa é de uma adesão de metade dos dois mil policiais da ativa. Usando um carro de som e falando aos colegas, líderes das associações elogiaram o movimento dos PMs e insinuaram pressão sobre quem não aderir.

— Se tiver problema com um delegado, chama o bonde da Justiça que vamos lá conversar com ele. Alguns mais novos são mais pressionados pelos engravatados lá de cima (em referência ao escritório da chefia de polícia), a gente vai conversar — discursou o presidente da Associação de Investigadores, Antônio Fialho Garcia Júnior. — Se um carro da perícia quiser sair, deixa sair. Pode furar um pneu, passar num caco de vidro. Essas coisas acontecem...

Pelo quinto dia seguido, as ruas de Vitória permaneceram vazias, ônibus não circularam, escolas e unidades de saúde ficaram fechadas. Colnago classificou a situação como "quase um cárcere privado" para os moradores, e direcionou críticas a adversários políticos. Ele e Hartung disseram que um encontro na noite de terçafeira, na Assembleia Legislativa, entre quase 20 deputados estaduais, representantes de associações de PMs e do movimento das mulheres, fortaleceu a paralisação.

— São os que querem o quanto pior, melhor. É desumano que interesses políticos estejam acima da vida das pessoas — disse o governador em exercício.

Um dos deputados que Colnago acusou sem citar o nome é Josias da Vitória (PDT), cabo da PM. Ao GLOBO, ele afirmou que a reunião buscava resolver o impasse e que o governo recusou novo encontro com as mulheres de PMs. Ele não vê ligação dos oficiais no movimento.

—Nasceu de forma espontânea das esposas. Agora, não me interessa discutir quem é líder do quê. Como parlamentar, quero ajudar a resolver.

O piso salarial da PM no Espírito Santo (R$ 2.646,12) é o segundo mais baixo na comparação com outros estados das regiões Sudeste e Sul, só à frente do Paraná. PMs capixabas alegam que estão há sete anos sem aumento real e há quatro sem reposição da inflação. O governo rebate: entre 2010 e 2016, o reajuste salarial foi de 38,85%. (Colaborou Marco Grillo)

O globo, n. 30502, 09/02/2017.País, p. 9