Impasse trágico 
Miguel Caballero 
08/02/2017
 
 
Governo do ES chama paralisação da PM de ‘chantagem’; número de mortos chega a 76

Enquanto tropas federais começam a tomar as vazias ruas da Região Metropolitana de Vitória, a crise de Segurança Pública que tomou o estado no sábado — em decorrência da paralisação do patrulhamento pela Polícia Militar — só aumenta. O número de mortos chegou a 76 até as 21h30m de ontem, o Departamento Médico-Legal continua superlotado e o confronto entre oficiais da PM e representantes do governo estadual se intensifica, com acusações dos comandantes e ameaças de insubordinação da tropa, deixando improvável uma solução rápida.

As autoridades do estado promoveram uma ofensiva ontem contra a paralisação. O secretário de Segurança, André Garcia, classificou como “chantagem” e “teatro” o movimento liderado por mulheres dos oficiais, que bloqueiam as entradas dos batalhões.

— O movimento que vem sendo realizado é irresponsável. Tem apostado no caos para tentar, colocando a sociedade de joelhos, pressionar o governo. São cenas revoltantes e ridículas. O movimento não quer conversar. Quem acha que rompemos o diálogo está enganado — disse o secretário.

Ao mesmo tempo, a Justiça do Espírito Santo determinou a retomada das atividades até as 16h, o que não ocorreu. À noite, a Secretaria de Segurança informou que quatro batalhões (o grupo tático Rotam e os das cidades de Vila Velha, Cachoeiro do Itapemirim e São Mateus) voltariam às atividades ainda na noite de ontem.

Não ficaram sem resposta. Policiais ligados às quatro associações de PMs e Bombeiros do estado negaram que integrantes dos batalhões de Vila Velha e São Mateus tenham voltado às ruas. As declarações do secretário de Segurança foram recebidas como fim de linha para uma negociação com o governo. E oficiais das associações dizem ainda que os policiais estão dispostos inclusive a serem presos em função do descumprimento da decisão da Justiça. Eles argumentam que não estão no comando do movimento que deixou as ruas sem policiamento e, portanto, a decisão não faz sentido. Os policiais negam estar em greve, o que é proibido pela legislação militar.

— Esta declaração do secretário é absurda, de quem não quer conversar. A categoria luta por melhores salários há mais de um ano. Agora, este movimento não é, e não é mesmo, oriundo das nossas associações. É um movimento das mulheres de policiais, que inclusive rechaçam nossas associações nos debates com o governo — diz o capitão Elizandro, da Associação de Oficiais da PM do Espírito Santo.

O governo capixaba não acredita que a paralisação seja fruto do bloqueio dos batalhões, sem anuência dos oficiais com suas mulheres —é a isso que o seComando-Geral cretário de Segurança se referiu como “teatro”. Na última segunda-feira, ele demitiu o comandante-geral da PM que havia sido empossado 21 dias antes. O novo comandante, Nylton Rodrigues, assumiu com uma dupla missão: dar fim à paralisação e comandar uma investigação que produza provas de que policiais estão por trás do movimento que parou o estado.

Por ora, não conseguiu êxito em nenhuma. Ontem à tarde, ele recebeu um grupo de dez parentes de PMs que estão acampados em frente ao quartel do em Vitória, e a reunião terminou como começou, sem acordo. Todas as mulheres acampadas em frente aos batalhões ouvidas pelo GLOBO sustentam que o movimento foi iniciado por elas, não tem o comando dos maridos e não arrefecerá se o governo não atender, especialmente, o pedido de aumento salarial. O primeiro batalhão ocupado, ainda na manhã de sexta, foi o de Serra, cidade na região metropolitana. Desde então, o movimento se espalhou, principalmente por grupos de WhatsApp e, no sábado à noite, já era generalizado no Espírito Santo.

— Nós nos comunicamos entre a gente, cada grupo que está em cada batalhão. Somos um coletivo, não temos liderança —afirmou ao GLOBO Angela Souza Santos, uma das que participaram da infrutífera reunião com o comandante-geral da PM.

‘ESCOLTA’ DE POLICIAIS À PAISANA

Depois da reunião, ainda em frente ao quartel do comando-geral, na Avenida Maruípe, uma das principais de Vitória, quase houve uma batalha campal no fim da tarde, entre as mulheres acampadas e manifestantes contrários à paralisação que foram ao local. Os manifestantes queimaram pneus, fecharam a rua e só não houve briga física porque um caminhão com dez soldados do Exército chegou para deixar cada grupo em um lado da rua, a custo de muito uso de spray de gás pimenta.

As mulheres de policiais militares, ladeadas por oficiais à paisana, de folga, reclamavam que as declarações de ontem do secretário de Segurança “incitaram a população" contra o movimento. Na calçada em frente, manifestantes se queixavam de terem sido ameaçados por policiais de folga, que teriam exibido armas. Num único momento, os dois grupos coincidiram, ao gritar “ô, ô, ô, cadê o governador?”

O governador Paulo Hartung se recupera de uma cirurgia para extração de um tumor na bexiga, mas já está de volta a Vitória, embora o governo ainda esteja sendo interinamente tocado pelo vice, César Colnago.

Enquanto isso, a região metropolitana de Vitória, de mais de um milhão de habitantes, continua parecendo uma cidade fantasma. Depois de quase 24 horas parados, os ônibus circularam ontem — mas só durante o dia, e vazios, uma vez que quase não havia passageiros. O comércio, saqueado na segundafeira, praticamente não abriu, e houve quem comprasse estoque de mantimentos nos poucos mercados abertos. As escolas continuam fechadas.

Ainda ontem, 50 agentes da Força Nacional de Segurança (FNS) foram às ruas, se juntando aos 250 homens do Exército que atuam desde segunda-feira. Segundo o governo, até amanhã estará à disposição um total de quase 1.200 agentes federais, entre FNS, Exército e fuzileiros. Esse número é apenas um terço do contingente de policiamento ostensivo da PM em dias normais na região metropolitana (3.500 homens), o que dá a dimensão do quanto será difícil reverter a onda de violência que parou o Espírito Santo.

O globo, n. 30501, 08/02/2017. País, p. 3