Trump versus ONU

Newton Carlos

18/04/2017

 

 

Trump já havia dito que a Organização das Nações Unidas (ONU) é uma piada. Eram escolhidos os componentes de seu gabinete, em meio a festejos quando se tratava dos mais destacados. A ONU tardou em aparecer no tabuleiro de quem representaria os Estados Unidos. Mistério, afinal, desfeito com o nome da senhora que tomaria assento na poltrona americana. Trump ganha abraços com seu bombardeio na Síria, afinal, os terroristas continuam matando. Mas é também preciso que a ordem mundial seja preservada.

A ONU foi criada para isso,  mas tornou-se refém de um sistema de potências, cinco com direito a vetar qualquer resolução no Conselho de Segurança. A Rússia não permitirá qualquer resolução condenando a ditadura da Síria. Não se trata de prepotência isolada. Bush invadiu o Iraque sem importar-se com a ONU. Uma das tantas pequenas situações que ocorrem nos corredores de instituições do sistema da ONU, cuja história é um rosário de fracassos.
Há uma visão histórica que adota a invasão da China, por parte do Japão, como marco inicial da Segunda Grande Guerra. Era começo dos anos 1930. Sem condições militares de resistência, a China apelou para a Liga das Nações, a ONU daquela época, mas as baionetas japonesas acabaram falando mais alto. A partir daí, a Liga foi sendo desmontada. Sobrevieram o martírio abissínio, imposto com crueldade por Mussolini, e a busca de espaços vitais por parte de Hitler.
Tornou-se trágica piada falar em internacionalismo, a ambição retomada depois da Segunda Guerra. As potências vencedoras concordaram em que era preciso criar mecanismos que assegurassem a integridade da espécie humana, ou a paz e a segurança no mundo. Nacionalismos só tinham produzido desgraças. Seis anos de guerra mataram 50 milhões. Dostoiévski teria razão com suas Memórias do subsolo? Os homens tanto adoram construir como destruir. O bombardeio de Dresden, na Alemanha, acabou com 200 mil vidas numa só noite. O holocausto massacrou 6 milhões de judeus e a bomba atômica foi construída e despejada nas cidades martírio de Hiroshima e Nagasaki.
“O ser humano pode vir a ser considerado mais um fracasso da natureza”, disse a historiadora Bárbara Tuchman. Fortaleceu-se a convicção de que era preciso implantar o internacionalismo, como guardião de deveres e direitos universais. A formação da ONU partiu da trágica constatação de que sistemas de potências foram responsáveis por duas guerras mundiais e mazelas adjacentes. Liquidá-los era um imperativo de convivência e da paz no universo. Mas a arquitetura da ONU, cuja tarefa, em linguagem formal, seria a de “preservar as gerações futuras do flagelo da guerra”, foi traçada em função dos interesses nacionais dos grandes: Estados Unidos, ex-União Soviética, Inglaterra, França e China.

Instalou-se o falso internacionalismo da guerra fria, segundo definição do historiador inglês Geoffrey Barraclough. Passaram-se décadas e nada mudou. Os cinco ficaram com assento permanente e poder de veto no Conselho de Segurança, onde se concentram as decisões sobre guerra e paz. Na prática, foi ressuscitado o velho sistema de potências, de trágicos antecedentes. A ONU não se envolveu com o Vietnã, assunto dos Estados Unidos, nem com a Guerra de Independência da Argélia, na qual a França aplicou técnicas de tortura que até hoje servem de modelo a operações de contrainsurgência. Militares e serviços de inteligência americanos envolvidos com o Iraque tiveram entre suas cartilhas o filme A batalha de Argel” e nem sequer se tocou seriamente no assunto Argélia na ONU.

Tanques russos acabaram com a Primavera de Praga com o Conselho de Segurança imobilizado. A ex-União Soviética invadiu o Afeganistão e os Estados Unidos invadiram o Iraque, usando argumentos falsos e violando leis internacionais. “Guerra ilegal”, acusou um ex-secretário-geral da ONU, Kofi Anan, em entrevista à BBC de Londres. E daí? Havia mais de 50 anos, a China invadiu o Tibete e continua lá até hoje. São calculadas em 400 os mortos em repressão a manifestações recentes. A China tem poderes para bloquear qualquer resolução que procure devolver o Tibete aos tibetanos e seu refugiado Dalai Lama. A Inglaterra retomou as Malvinas pelas armas, com inteligência fornecida pelos Estados Unidos. (...)

 

JORNALISTA

 

 

Correio braziliense, n. 19684, 18/04/2017. Opinião, p. 11.