ENTREVISTA - Fernando Henrique Cardoso

Denise Rothenburg

19/04/2017

 

 

Para o ex-presidente do país, é prematuro julgar os políticos pelas delações da Odebrecht, que precisam ser analisadas e provadas pela Justiça
 
 

Lisboa (Portugal) — Na opinião do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP), o Brasil passa por um momento em que a sociedade deixou de acreditar nos partidos. “Este é o problema que nós temos. A crise que estamos vivendo não é propriamente uma crise, é uma mutação da civilização e que tem consequências políticas”, afirmou, durante conferência no V Seminário Luso-Brasileiro de Direito, na capital portuguesa. Em entrevista exclusiva para o Correio, Cardoso comentou que as siglas perderam a capacidade de agregar valores e isso as afasta das pessoas. “Se não tiverem (valores), vão até continuar, mas não vão ser apoiados com força pela sociedade. A sociedade quer causas”, comenta.

Além da crise política, o tucano comentou a citação do seu nome e dos principais correligionários nas delações de ex-executivos da Odebrecht. Para Cardoso, todos os partidos no Brasil podem ter recebido recursos não contabilizados. “Tem que começar a ver qual a responsabilidade efetiva. Esse dinheiro veio de onde? Do setor público, como no petrolão? Ou foi da própria empresa que tinha caixa dois e descarregou?” Entretanto, faz questão de ressaltar que não é favorável a anistia ao caixa dois. “O caixa dois está capitulado de maneira diferente da corrupção, o que é verdade, é só ler o Código Penal e o Código Eleitoral, você vai ver que são coisas diferentes. O que eu disse e repito, é que a Justiça tem que separar o joio do trigo. Tem gente que é acusada sem base, e isso a Justiça, vai dizer”, acrescenta.

O senhor falou que vivemos uma mutação da civilização, não uma crise política, algo que vai além dos partidos políticos. Como substituir os partidos?
Não sei se pode substituir os partidos, nem se deve. Mas há um problema cultural também. Não só mudam as relações de produção, o tipo de trabalho, a fragmentação da sociedade, mas a visão que se tem das coisas. É a isso que estou me referindo. Os partidos têm de entender que eles representavam antes interesses muito organizados, ou queriam representar, de corporações, de setores da sociedade de classe. Hoje, as pessoas têm muita mobilidade, e se você não tiver valores, não tem como agregar, e os partidos perderam essa capacidade de propor valores, no que que eles acreditam.

Mas os partidos têm valores hoje em dia?
Esse é o ponto. Eles precisam ter. Se não tiverem, vão até continuar, mas não vão ser apoiados com força pela sociedade. A sociedade quer causas. (Quer saber) Você acredita no quê?

Pelo que a gente percebe, na visão da sociedade, os partidos são meras instituições de negócios...
De interesses. Visão que corresponde a uma parte da prática dos partidos, não foi simplesmente tirada do nada. Eles (os partidos) foram se transformando em algo que perdeu a capacidade de tocar nas crenças das pessoas. E tem que voltar a tocar nas crenças e precisa ver que crenças são essas. As pessoas até acreditam nas coisas, em algumas religiões. Não vou discutir em que religião. Acreditam que o Estado têm de ter educação, serviços. E acreditam, muitas vezes, em coisas contraditórias, a sociedade não é homogênea. Portanto, tem que ter partido, tem que ter diversidade, mas não pode ser uma fragmentação em função apenas de agregados de pessoas que têm objetivos pessoais. Aí, as pessoas pensam, por que vou me juntar a isso? Alguns continuam tendo alguma mensagem, mesmo que não se queira discutir. Como é que funcionou o sistema político brasileiro nas últimas duas décadas? Dois partidos simbolizavam visões, o PT e o PSDB. Nunca foram majoritários. Nem um, nem outro, nem na Câmara, nem na sociedade.

Sempre precisavam do PMDB?
Que é o partido que sabe funcionar a máquina. Um partido do Estado, digamos assim. Algo que sempre tivemos, no passado também. O PMDB sempre teve essa função. Claro que havia outros, alguns com enraizamento, alguns ideológicos, outros, não. Hoje, os três partidos, a sociedade não sabe muito bem se eles ainda significam e o que significaram. Ou eles voltam a significar alguma coisa ou viram um partido como outro qualquer.

Hoje não estão todos iguais?
A sociedade olhando, acha que são todos iguais, mas não são. Veja no caso em pauta, você tem acusações disso, daquilo para uma ou outra pessoa. O PSDB tem o governo de São Paulo há mais de 20 anos. Não existe um esfacelamento do governo, do partido. Em alguns estados, há partidos que conseguiram, não se desfiguraram completamente. Em outros, acabaram com o estado e não só com a estrutura partidária.

Caso do Rio de Janeiro?
Esse é o mais dramático, mas não é o único. Tem vários que estão em situação muito precária. Mas, então, os partidos não são todos iguais. A sociedade pode até pensar isso, mas não são. Agora, seja qual for o caminho, ele vai ter que se revitalizar se quiser existir por mais tempo e se revitalizar, como disse aqui, entendendo que temos uma mutação de valores.

Há quem diga que o Lula teria condições de retomar a presidência em 2018. Pelo menos, essa é a aposta do PT. Como o senhor vê a situação?
A situação do Lula é delicada porque ele é réu. Foi acusado formalmente em vários processos. Vai ser julgado. Não vou opinar porque não sou juiz, o juiz que vai julgar. Agora, a possibilidade da volta, acho remota, porque quando o Lula conseguiu ter uma expressão nacional foi porque ele saiu do gueto, ganhou a classe média e o apoio das pessoas que têm dinheiro. Hoje, ele perdeu esses apoios. Pode recuperar? Em política, tudo é possível, mas eu acho pouco provável.

E em relação ao PSDB? O senador Aécio Neves, o senador José Serra e o governador Geraldo Alckmin respondem a inquéritos. Como o senhor vê esses inquéritos que citaram, inclusive, a sua campanha lá de trás?
Eu já respondi e eles me isentaram de tudo, eu também não sei se houve ou não. Agora, veja: todos os partidos no Brasil, quase que sem exceção, não conheço nenhuma exceção, podem ter recebido recursos não contabilizados. Se essa for a regra, inviabiliza todos. Não acho que essa regra seja a principal. Tem que começar a ver qual a responsabilidade efetiva. Esse dinheiro veio de onde? Do setor público, como no petrolão? Ou foi da própria empresa que tinha caixa dois e descarregou? Então, tem que separar? E quem separa isso? É a Justiça. Então, acho que é prematuro.

O senhor acha que tem que haver anistia ao caixa dois, como os parlamentares estão tentando fazer?
Não acho isso, nem nunca disse isso. Eu disse que o caixa dois está capitulado de maneira diferente da corrupção, o que é verdade, é só ler o Código Penal e o Código Eleitoral, você vai ver que são coisas diferentes. Então, não acho que seja o momento de o Congresso mexer nesses temas. O que eu disse e repito, é que a Justiça tem que separar o joio do trigo. Tem  gente que é acusada sem base, e isso a Justiça, vai dizer.

Mas a impressão que se tem é de que a Justiça misturou tudo ao divulgar a delação sem separar a listagem previamente....
A Justiça divulgou assim porque havia vazamentos, que é uma coisa negativa. É melhor que se saiba tudo do que ficar na insinuação. Aí, você vê sair, fulano disse, você vai lá e confere o que ele disse mesmo. Tem prova ou só disse? São situações diferentes. Como nós vivemos um momento delicado, a decisão de divulgar foi correta. Melhor que se saiba e aí cada um trata de se defender.

Em relação ao PSDB ainda, em se tratando de 2018, tem muita gente levantando o nome de João Dória. O senhor acha que é ele mesmo o candidato ou é cedo para fazer essa avaliação?
Acho que ainda é cedo, embora eu deva dizer que a avaliação popular do João Dória é positiva e isso é bom que seja. Ele disse a mim que o candidato dele é o Geraldo Alckmin, claro que, em política... Acredito que ele tenha dito sinceramente. Agora, na política, os fatos é que comandam e não os desejos das pessoas. Falta muito tempo para a gente saber o que os fatos vão comandar.

Em outros partidos, fala-se em Ciro Gomes, Jair Bolsonaro, que avaliação o senhor faz desse recrudescimento de pessoas com visões mais radicais?
Acho que no mundo todo tem uma tendência a um certo radicalismo. A democracia é incompatível com o radicalismo. Acho que você tem que buscar caminhos que não sejam dessas posições radicais. Quando você diz, eu não converso com o outro, quero te matar, você não está fazendo política, você está numa guerra civil aberta. Não digo que todos eles sejam iguais, existem formas diferentes de radicalismo, mas por que tem algum eco? Porque a sociedade, neste momento, está com raiva. E tem lá as suas razões para ter raiva. Como eu acho que a sociedade não deve viver com sentimentos antagônicos agudos, porque isso dissolve a sociedade, farei tudo para desanuviar o ambiente.

Mas a gente tem ouvido muito que não há clima para diálogo entre os partidos, que as pontes estão destruídas. Na época de Fernando Collor, havia pontes entre o senhor, o Lula, o Sarney... como está agora essa “pinguela”, para usar um termo que o senhor já usou?
Não é do governo, é da situação. Há várias pinguelas. É bom que haja. Acho que você sempre tem que ter a oportunidade de dialogar. Agora, dado o clima brasileiro, você tem que saber sobre o que se está dialogando porque, senão, vão pensar que é um complô. E o diálogo não deve ser escuso. Você tem que dialogar. Como é que saímos dessa não é a preocupação de um partido, é do Brasil.

O senhor tem dialogado? É verdade que houve um encontro entre o senhor e o Lula?
Não houve. O encontro que tive com Lula foi público, fui visitá-lo pela morte da Marisa. Não temos nada marcado.

O senhor vai procurá-lo?
Eu não procuro ninguém. Acho que estou fora desse cotidiano da vida política do país há muitos anos. Quando acham que tenho alguma valia, tento ajudar no que eu posso.

Mas já falaram no senhor até como opção para eleição indireta, no caso de o governo Michel Temer se inviabilizar...
Primeiro, não acho bom que ele se inviabilize. Segundo, afasto essa hipótese. Acho que qualquer que seja o presidente eleito pelo Congresso, ele só terá uma função: acelerar as eleições, porque ele não terá força para fazer nada. Não quero passar por isso. A essa altura da vida não quero ser a pessoa encarregada desse momento difícil. Não tenho condições, não me proponho a isso e não acho que vai chegar a esse ponto. Espero que não, espero que sejamos capazes de levar adiante o governo de Michel Temer. É importante que se diga que o governo tem feito mais do que as pessoas reconhecem e do que se esperava.


Por exemplo?
Mexeram muito na educação, que é uma coisa importante. Na área econômica, tomou várias decisões importantes, obteve aprovação no Congresso de temas difíceis. Enfim, é preciso ter claro que, diante do momento que estamos passando, não é fácil obter essas coisas. É preciso que a gente ajude, não é nem o governo, ajude o Brasil. Tem 13 milhões de desempregados. Não é possível que as pessoas não se comovam com isso. Minha visão do mundo é menor do que a necessidade dessa gente ter emprego. Aí, cabe o diálogo: o que é preciso para resolver isso?

É aí que deve, então, entrar o diálogo, em cima das reformas, a da Previdência, a trabalhista?
Não há dúvidas de que todas essas reformas devem ser feitas, estão sendo feitas e o Congresso vai negociar.

O senhor tentou reformar a Previdência, o senhor apoia a proposta do governo?
Veja você: por um voto o Congresso recusou uma reforma que dava 55 anos de aposentadoria para mulheres e 60 para os homens. Se tivessem aprovado isso lá, estaríamos em situação melhor hoje. Agora, o governo está em situação mais difícil, tem que fazer os cálculos. O relator, com quem conversei, vai tentar propor mudança e o governo verá se pode ou não. Arthur Maia, por gentileza dele, me perguntou o que eu achava. Eu disse, não conheço o projeto, mas acho que a gente tem que analisar a transição, é delicado. Minha visão é a de que a questão não é só fiscal, é também de redução de privilégios. O foco deve ser de igualdade, não só de ajuste fiscal.

Em relação à trabalhista, o senhor também tentou fazer algo lá atrás, sobre acordado versus legislado.
Hoje já está sendo praticado. Foi o ministro Dornelles que propôs. Foi aprovado na Câmara e o presidente Lula retirou do Senado. Anos depois, o presidente do Sindicato de Metalúrgicos de São Bernardo e a diretoria vieram falar comigo, eu não era mais presidente. E por quê? Porque eles queriam isso. Eles já praticam isso, banco de horas, etc. A presidente (Dilma) Rousseff mandou um projeto de garantia de emprego que fazia isso. Então, a gente tem que reconhecer que há. Agora, não é para mexer nos direitos constitucionais dos trabalhadores, que é confusão. Não. (O trabalhador) Tem que ter direito a férias remuneradas, garantias que a Constituição assegura, não tem que mexer em nada disso. Tem apenas é que, no contrato de trabalho, ter alguma flexibilidade. Essas são questões importantes, também na reforma política.

E a reforma política?
Agora não dá para mexer em muita coisa. Mas cláusula de desempenho, proibição de coligação nas eleições proporcionais e discussão como é que paga, como é que financia. Esses são os três pontos que o Congresso vai ter que avançar.

O senhor é a favor do financiamento público?
Do jeito que eles estão querendo, não. E por quê? Porque os partidos hoje se formam para ter dinheiro.

Mas o empresarial também dá problema, o que fazer?
Há um modo de evitar isso, não estou propondo. Se for para voltar o financiamento empresarial, a meu ver, a empresa tem que doar o dinheiro ao tribunal eleitoral, que abre uma conta aos partidos, que apresenta os gastos. Não tem que passar dinheiro do bolso de um para o outro. Ou seja, há meios de se fazer, seria um fundo financiado pelo setor privado. Distribuiria segundo o número de votos, como tem em vários lugares do mundo. E tem que baixar o custo da campanha, senão, não adianta. O que aumenta o custo? É a marquetagem na tevê. Acaba com isso. É ideia antiga de todos nós no PSDB.

Ou seja restringe a uma câmera e ao candidato?
Faz debates, algo assim. Já tiveram tantas medidas que foram restringindo, o uso de santinhos. Se baratear, pode até ser um fundo público. Mas com o custo alto, vai acabar entrando dinheiro por fora.

O senhor falou do PMDB comopartido de estado. O senhor coloca o PMDB como o culpado do toma lá dá cá da crise que chegamos hoje?
O toma lá dá cá, em termos de política democrática, você faz alianças no mundo todo. Qual a diferença? Você faz em torno de um projeto. Mesmo eu, quando fiz aliança com o PFL, foi para fazer algumas coisas objetivas. Isso foi se desfigurando a partir do mensalão, que não era isso. Era dar dinheiro para votar a favor do governo, e não em favor de um projeto. Depois, houve uma mudança maior ainda, que o petrolão demonstrou. Dinheiro não era das empresas, era público. Aí, é roubo. A negociação democrática, que é normal, se você não tem maioria e precisa de maioria, você tem que negociar no mérito. Aqui em Portugal, foi feito o que eles chamam  de geringonça: um acordo de um bloco de esquerda para apoiar o primeiro-ministro e o presidente é de centro-direita. E se entendem. Quando você faz acordo, você dá lugar no governo e não é barganha suja, é negociação política legítima. Quando compõe uma maioria no Brasil, faz para ter maioria e apoia o que o governo fizer, não há negociação de mérito. A base aliada virou isso.

“Hoje, as pessoas têm muita mobilidade, e se você não tiver valores, não tem como agregar, e os partidos perderam essa capacidade de propor valores, no que que eles acreditam”

“A situação do Lula é delicada porque ele é réu. Foi acusado formalmente em vários processos. Vai ser julgado (…) A possibilidade da volta, acho remota, porque quando o Lula conseguiu ter uma expressão nacional foi porque ele saiu do gueto, ganhou a classe média e o apoio das pessoas que têm dinheiro. Hoje, ele perdeu esses apoios. Pode recuperar? Em política, tudo é possível, mas eu acho pouco provável.”

 

 

Correio braziliense, n. 19685, 19/04/2017. Política, p. 4.