Entrevista - Luís Roberto Barroso 
Carolina Brígido e Francisco Leali
04/02/2017
 
 
‘Minha principal escolha é diminuir o poder do tráfico’

Depois de bilhões de dólares e milhares de mortos, a guerra às drogas fracassou e, por isso, é hora de tentar uma alternativa: legalizar as drogas, com regulamentação de produção, distribuição e consumo. Tudo isso de uma forma planejada e gradual, como explica  ministro do STF Luís Roberto Barroso nesta entrevista.Se não der certo, basta voltar atrás diz ele.

O ministro do STF Luís Roberto Barroso conta em entrevista que defende a legalização das drogas de forma gradual e planejada para reduzir o poder do tráfico, mas sem “oba-oba”. Enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) não avança no julgamento do processo que pode resultar na descriminalização do porte de maconha para o consumo pessoal, o ministro Luís Roberto Barroso, integrante da corte, já está enxergando além. Para ele, descriminalizar é pouco. Seria preciso legalizar o uso da maconha e, se a experiência der certo, estender também para a cocaína. A medida seria eficaz, avalia, no combate ao tráfico e à opressão que os traficantes exercem em comunidades carentes. Mas ele diz que a legalização não pode ser feita no “oba-oba”. Barroso combate a ideia de que a legalização incentivaria o aumento do consumo de drogas. Ele compara com a situação do cigarro, que tem publicidade controlada e obrigação de veiculação de alerta de risco à saúde. Nas últimas décadas, diminuiu a quantidade de fumantes no país.

Qual a posição do senhor sobre as drogas?

A minha primeira premissa é a de que a droga é uma coisa ruim e, portanto, qualquer política pública deve ter por propósito desincentivar o consumo, tratar os dependentes e combater o tráfico. A minha segunda premissa é a de que a guerra às drogas, tal com vem sendo praticada há quase 50 anos, fracassou. Depois de muitos bilhões de dólares, depois de muitos milhares de mortos, o consumo só fez aumentar. Além do consumo, criouse uma imensa criminalidade associada às drogas.

Como o país deveria enfrentar o problema das drogas?

Eu acho que o primeiro e grande objetivo de uma política de drogas no Brasil deve ser acabar com o poder opressivo do tráfico sobre as comunidades carentes. O tráfico impede que uma família de bem eduque o seu filho numa cultura de honestidade e de decência. E essa talvez seja uma das maiores violações de direitos humanos que há no Brasil: impedir pai de criar o seu filho honestamente. O segundo objetivo, esse um pouco mais imediato, que está associado à crise no sistema penitenciário, é reduzir índice de encarceramento inútil de jovens primários que são presos como traficantes. São pessoas não perigosas que passam alguns meses ou alguns anos na prisão e saem de lá perigosas. O terceiro objetivo deve ser controlar o consumo. Como o senhor acha que o poder público deveria fazer isso? Deveria haver a tentativa de legalizar (as drogas) paulatinamente, começando pela maconha. Digo tentativa, porque não tenho certeza se vai dar certo. Eu acho que é uma experiência.

Por que o senhor acha que as drogas deveriam ser legalizadas?

Acho que se deve tentar realizar essa experiência porque o modelo alternativo, que é a guerra, não está funcionando. E, na vida, quando alguma coisa não está funcionando, a gente deve pensar numa alternativa. O poder do tráfico advém da ilegalidade. Portanto, eu acho que legalizar a maconha, significando regulamentar a produção, a distribuição e o consumo, pode ser uma alternativa.

Mesmo considerando aquela premissa do senhor de que a droga é ruim?

Sim, porque a legalização ajuda a combater. A legalização não terá como consequência, na minha visão, nem o incentivo, nem o aumento do consumo.

Qual seria a melhor forma de comercializar a maconha?

Acho que se deveria tratar como se trata o cigarro, como atividade econômica. É preciso tributar, regular, exigir que se prestem informações, cláusulas de advertência, fazer contrapropaganda. Idealmente, será possível produzir as mesmas consequências em relação ao cigarro: em pouco mais de duas décadas, o consumo na população adulta caiu de 35% para 15%.

Quando se fala em legalização, logo se pensa no tratamento dado à bebida, com propaganda em todos os lugares...

Acredito que o tratamento a ser dado é o que se dá ao cigarro, com publicidade extremamente limitada e controlada. A pesquisadora Ilona Szabó demonstrou em pesquisas feitas pelo mundo que a descriminalização não produz impacto sobre consumo. Podemos fazer uma analogia com o aborto. Ninguém é a favor do aborto, todo mundo é contra. Porém, a criminalização não é uma boa política pública. As estatísticas demonstram que descriminalizar o aborto não impacta o número de abortos. Impacta tão somente o número de procedimentos seguros. Em matéria de drogas, existe uma demanda que já é atendida ilegalmente. Legalização não é dizer que é legal no sentido de bacana, mas significa que vai combater com ideias, e não com a polícia.

O senhor não teme o aumento do consumo?

Em alguns estados americanos, como o Colorado, esse passou a ser um mercado relevante, sem aumento do consumo. Passou da informalidade para a economia formal. Portanto, um comerciante honesto, vende, entre outros produtos, este. No mínimo, você fará uma concorrência com o tráfico ilegal. Com o cigarro também tem contrabando e outros problemas. Isso significa que é preciso fazer uma tributação equilibrada para não fomentar o tráfico.

E a cocaína, por que deveria ser legalizada?

A maconha é hoje apenas uma parte deste mercado, e acho que nem é a parte mais lucrativa. A cocaína tem efeitos psíquicos mais graves. Mas aqui, se algum dia se optar por regulamentar cocaína, será preciso fazer uma escolha filosófica. A minha principal escolha filosófica é diminuir poder do tráfico. O consumidor da maconha está sujeito a efeitos sobre si extremamente negativos. Porém, ele está vivendo a própria vida e fazendo escolhas próprias. Minha preocupação maior se dirige àquelas pessoas que são oprimidas pelo tráfico sem escolha. Entre impedir o poder do tráfico ou interferir na decisão das pessoas de se intoxicarem, eu tenderia a fazer a opção por impedir a opressão dos inocentes.

Então, funcionando a experiência de legalizar a maconha, ela poderia ser estendida à cocaína?

Penso que sim. Se der certo em um caso, faz-se a experiência com outro. Sempre tendo em conta que estamos fazendo experiências. Quando você está criando um remédio novo na medicina, você pode testar em laboratório, em cobaias, fazer testes clínicos de diferentes graus. Quando você está lidando com o direito e com políticas públicas, infelizmente você não pode fazer testes em laboratório. O laboratório acaba sendo a vida real. Por isso que as mudanças têm que ser graduais, verificando-se impacto que elas vão produzir. Eu não acho que a legalização possa ser uma coisa feita no oba-oba, ela tem que ser feita de uma forma planejada. Tem que haver um estudo, um planejamento e uma implementação gradual e monitorada. O Brasil é tradicionalmente o país do improviso. Aqui não funciona. A gente tem que ter as melhores cabeças que concordem com essa mudança ajudando a pensar e implementar um plano que começaria com a maconha e, se der certo, passa-se para a cocaína.

E se a legalização das drogas surtir um efeito social ruim?

Se não der certo, a gente volta atrás. Não há vergonha na vida em se arriscar em coisas novas e, não dando certo, voltar atrás. Eu não estou aqui enunciando uma verdade revelada, eu estou propondo uma alternativa a um modelo que não deu certo. A vida é feita de prudências e de ousadias. É preciso acertar quando é um caso e quando é o outro. Nós temos sido prudentes, sem sucesso. Portanto, acho que está na hora de um pouco de ousadia.

Qual a opinião do senhor sobre a legalização do crack?

Sou um observador de sistemas a partir da minha posição como juiz. Eu me preocupo com a quantidade de pessoas que vai presa e tem a vida destruída porque são acusadas de delitos associados a drogas. Esta é a realidade que eu conheço. Para ser honesto, não mencionei crack porque não domino os fatos e os conceitos. A referência que eu tenho é que o crack é destruidor da autonomia da pessoa, da sua capacidade de fazer escolhas esclarecidas. Se isto é fato, eu acho que esta é uma droga que não se enquadra nas mesmas premissas que eu estabeleci previamente.

O STF começou a julgar um processo sobre descriminalização do porte para uso pessoal. O senhor acha que uma decisão do tribunal poderia contribuir para a legalização das drogas?

O juiz pode implementar o que o está materializado na Constituição. O que não está na Constituição, e depende de novas decisões políticas, isso depende do Congresso. Essa fronteira entre Constituição e legislação demarca o limite da atuação do Poder Judiciário. No que diz respeito ao consumo pessoal, votamos já no Supremo em relação à maconha o ministro Gilmar Mendes, o ministro Edson Fachin e eu que viola a Constituição, viola a liberdade individual e a privacidade criminalizar uma conduta que alguém pratique reservadamente, no espaço da sua vida privada, e que não afete ninguém. Os votos que tiveram até agora foram no sentido de que criminalizar o consumo da maconha viola a Constituição. Não sei se essa é a posição que vai prevalecer.

O globo, n. 30497, 04/02/2017. Sociedade, p. 25