Diretos humanos na idade das máquinas

Marcelo Coutinho

24/04/2017

 

 

DIRETOR DO OBSERVATÓRIO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ) E DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA (UNB)

 

 

Em 1579, o abade italiano Secondo Lancellotti escreveu que, na antiga cidade polonesa de Danzig, sob domínio germânico, um senhor chamado Anthony Müller havia visto, décadas antes, um tear especial, Bandmühle, cinco a 10 vezes mais produtivo do que o mais veloz dos artesãos à época. Consta que, temendo o desemprego de muitos trabalhadores do ramo da tecelagem, o prefeito e o conselho municipal da cidade, recém-saída da Idade Média, não só decidiram por tocar fogo na engenhosa máquina, como também mandaram estrangular seu inventor. Apenas por acaso, justamente no corredor de Danzig, começou também a Segunda Grande Guerra, com a invasão nazista à Polônia.Histórias da origem das máquinas como essa, relatada por Lancellotti, se repetiram nos séculos seguintes, mesmo depois de a revolução industrial se tornar inevitável na Inglaterra. Muitas revoltas populares foram acesas por causa de invenções semelhantes, como as máquinas de tosar lã e serrar movidas a água, que tiraram o emprego de centenas de milhares de europeus. É simbólica desse espírito da época a destruição em massa de equipamentos nos distritos industriais ingleses no início do século XIX, respondida desta vez com força pelas autoridades que já não continuariam impedindo essas geringonças diabólicas, como nas trevas de Danzig.


Antes de as revoluções burguesas forjarem as sociedades capitalistas, os direitos humanos nem existiam ainda de verdade, ao menos como os conhecemos desde a Declaração Universal de 1948, derivada do trauma dos campos de concentração no holocausto. Os direitos humanos estiveram sempre muito associados à liberdade das pessoas frente ao poder. A discussão sobre os direitos trabalhistas e coletivos só veio a acontecer de fato pela primeira vez com a Primavera dos Povos de 1848, precisamente porque a situação dos operários era desesperadora e já havia a formação de uma opinião pública nas principais cidades. Pode-se dizer que enquanto as máquinas entravam por uma porta, a democracia também atravessava por outra.Ao mesmo tempo em que os operários passavam a conviver com uma parafernália industrial e se degradavam as condições sociais, os regimes autocráticos eram questionados. A luta por uma representação política mais condizente com a população vinha paralelamente às modificações tecnológicas e produtivas do período que fomentavam a luta entre operários e máquinas. Desde então, sobretudo quando o sufrágio eleitoral realmente se universaliza no século XX, os governos passam a conviver sob constante pressão popular, embora outras transformações internacionais depois tornassem essas demandas difíceis de serem atendidas.

A globalização precipitou uma era pós-industrial em muitos países. O caso brasileiro apresenta hoje dilemas típicos das sociedades de serviço dessa era, agravado substancialmente pela particularidade da depressão econômica dos últimos anos. Cerca de 1/3 da população adulta no país está desempregada, subempregada ou terceirizada. São dezenas de milhões de pessoas que ainda por cima são obrigadas a experimentar reformas que alteram seus direitos. Não foi a entrada das máquinas que as colocou nessa situação como na Europa em tempos remotos, mas um movimento precoce de desindustrialização nacional a partir de 2008, período em que já se prepara um novo salto tecnológico disruptivo no mundo.Se, por um lado, a revolução industrial do século XVIII atingia principalmente os setores produtivos, por outro, a atual quarta revolução industrial, caracterizada pela autonomia dos robôs, impacta também fortemente sobre a área de serviços. Além disso, se no passado as máquinas vieram acompanhadas pela democratização dos regimes políticos e o desenvolvimento dos direitos humanos, agora tanto a democracia, quanto os direitos humanos estão em xeque. Atrevem-se até a falar de “trabalho sem justiça”, em retrocesso civilizatório que nada tem a ver com o liberalismo, mas com a ascensão chinesa, ao estabelecer um novo padrão no qual, de alguma forma para se manter competitivos, homens e mulheres acabam tendo que funcionar como máquinas, sem poder adoecer nem se aposentar em muitos casos. É claro que numa situação adversa, leis muito rígidas e antigas dificultam ainda mais a vida de um trabalhador contemporâneo. No entanto, isso não anula o fato de o emprego humano continuar se depauperando, mesmo quando parece receber algum refresco temporário nos indicadores oficiais.

Com o advento da inteligência artificial, a palavra desemprego talvez precise ser substituída, não porque o fenômeno venha a desaparecer, mas porque perderá sentido quando robôs fizerem quase todo o trabalho. Ainda que haja de novo quem queira, em agitações populares, resistir às mudanças e queimar esses aparelhos, agora semoventes, promovendo passeatas contra atendentes eletrônicas de telemarketing ou depredando carros que andam pelas ruas sem motorista, tais movimentos antitecnológicos apenas gerarão graves atrasos de desenvolvimento, como nas antigas repúblicas socialistas, onde se mantinha artificialmente o pleno emprego à custa da inovação, eficiência e modernidade. (...)

 

 

Correio braziliense, n. 19690, 24/04/2017. Opinião, p. 9.