Conta-superlotação
Carolina Brígido 
17/02/2017
 
 
STF manda indenizar preso por má condição da cela e cria precedente para enxurrada de ações

-BRASÍLIA- O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu ontem que presos em estabelecimentos superlotados têm direito a receber indenização da administração pública. A decisão foi tomada por sete votos a três e tem repercussão geral — ou seja, juízes de todo o país precisam aplicar esse mesmo entendimento ao analisar processos sobre o assunto. O valor a ser pago será calculado pelo juiz de primeiro grau, dependendo da situação específica. No caso julgado pelo Supremo, o preso dividiu a cela com cerca de cem pessoas, enquanto a capacidade era para 12. A compensação foi fixada em R$ 2 mil.

O impacto financeiro para os estados e a União ainda não foi calculado, mas pode representar uma cifra bilionária, se todos os presos nessas condições entrarem com ações na Justiça. Segundo dados mais recentes do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), órgão do Ministério da Justiça, havia no Brasil 622 mil presos em dezembro de 2014. O sistema oferecia 371 mil vagas. Não se sabe quantos presos atualmente estão em celas superlotadas. No julgamento de ontem, o ministro Celso de Mello, o mais antigo integrante do tribunal, protestou contra a negligência do poder público em relação ao sistema carcerário.

— Há no Brasil um claro e indisfarçável estado de coisas inconstitucional resultante da omissão do poder público para neutralizar a situação de absurda patologia constitucional gerada incompreensivelmente pela inércia do Estado, que descumpre a Constituição Federal e fere a decência dos cidadãos da República — disse o decano, completando: — O Estado tem agido com absoluta indiferença. Esse comportamento por parte do Estado é desprezível, é inaceitável.

O caso analisado pelo STF é de Anderson Nunes da Silva, que foi condenado a 20 anos de prisão por latrocínio (roubo seguido de morte). Ele cumpriu pena na penitenciária de Corumbá, no Mato Grosso do Sul. Segundo o processo, não havia no local condições mínimas de saúde e de higiene. Por falta de espaço, o condenado costumava dormir com a cabeça no vaso sanitário.

Silva ficou preso por oito anos e hoje está em liberdade condicional. Quando ainda estava no presídio, ele pediu à Justiça indenização no valor de um salário-mínimo por mês que ficou no presídio em condições degradantes.

Todos os dez ministros que votaram no STF concordaram que o poder público é responsável pelos danos causados à dignidade do preso quando o condenado estiver em estabelecimento que não oferece estrutura adequada. Desses, sete ministros declararam que essa violação deve ser compensada financeiramente. Dos sete, apenas dois votaram para que o valor fosse de um salário-mínimo mensal.

AGU: POTENCIAL LESIVO AOS LIMITES DO ORÇAMENTO

Os outros três ministros foram contra esse tipo de compensação. Para eles, presos em condições adversas deveriam ter a pena contabilizada de forma diferenciada, abreviando o tempo permanecido atrás das grades. Para esses ministros, a solução da indenização financeira ficaria impraticável, porque os estados não teriam dinheiro suficiente em caixa para arcar com a despesa. Eles argumentaram também que os recursos deveriam ser usados para promover a melhoria do sistema penitenciário, e não para compensar o sofrimento individual de cada um dos presos.

O ministro Luís Roberto Barroso ponderou que uma indenização de R$ 2 mil seria uma nova afronta à dignidade do preso, porque não seria suficiente para compensar o sofrimento na prisão. O valor de um salário-mínimo por mês, para ele, seria justo. No entanto, a medida quebraria os estados.

— Os estados não têm esse recurso. E, se tivessem, seria para investir na melhoria do sistema — afirmou Barroso.

Em março do ano passado, o STF já tinha declarado o direito da família de receber indenização quando o preso morrer dentro da penitenciária — seja por doença, seja em decorrência de rebeliões.

O processo julgado ontem chegou ao STF em março de 2008. Em parecer de 2007, a Procuradoria-Geral do Mato Grosso do Sul argumentou que o dinheiro público deveria ser usado prioritariamente para “cidadãos de bem”, e não para indenizar presos.

“Ainda que seja de fato lamentável a superlotação carcerária, ocorre que, ao juízo do legislador, há outras prioridades que são mais emergentes. Há cidadãos de bem, potenciais vítimas do recorrente, que vivem nas favelas sob agruras semelhantes àquelas alegadas pelo recorrido. A sociedade tem manifestado entendimento, através de seus mandatários legisladores, de que estes cidadãos têm prioridade na solução de suas necessidades”, diz o documento.

Em fevereiro de 2013, a Advocacia-Geral da União (AGU) já tinha alertado para a falta de recursos suficientes para garantir o pagamento de indenização a todos os presos em condições insalubres. “A controvérsia em questão mostra-se relevante, uma vez que, se o Plenário dessa Suprema Corte decidir pela existência do direito dos presos em epígrafe, haverá o risco de outros presos, das mais diversas penitenciárias espalhadas pelo Brasil, enquadrados nessa mesma situação, ingressarem em juízo para também pedir indenização por dano moral. Indiscutível, portanto, o potencial lesivo do presente julgamento aos limites orçamentários do Estado”, diz parecer da AGU enviado ao STF.

O globo, n. 30510, 17/02/2017. País, p. 3