Entidades criticam censura à reportagem sobre Marcela 
14/02/2017
 
 
Para professor da USP, não cabe a juiz decidir teor de texto jornalístico

-SÃO PAULO E BRASÍLIA- Entidades que representam jornalistas e empresas de comunicação criticaram a decisão do juiz Hilmar Castelo Branco Raposo, responsável pela censura a reportagens produzidas pelo GLOBO e pela jornal “Folha de S. Paulo”, na última sexta-feira, sobre a troca de mensagens entre a primeira-dama, Marcela Temer, e um hacker, que tentava extorqui-la. O GLOBO vai recorrer da decisão.

Em nota conjunta, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), a Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner) e a Associação Nacional de Jornais (ANJ) afirmaram que consideraram a decisão “censura prévia”.

“As associações consideram a decisão judicial um cerceamento à liberdade de imprensa e esperam que a sentença seja revista ou reformada imediatamente, garantindo aos veículos de comunicação o direito constitucional de levar à população informações de interesse público”, afirma a nota.

A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) informou, também em nota, que é contrária a qualquer tipo de censura e reivindicou a anulação “da absurda” decisão. “Impedir repórteres de publicar reportagens é prejudicial não apenas ao direito à informação, como também ao papel do jornalista de fiscalizar o poder público”.

A entidade lembrou a declaração da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, durante o julgamento da ação que liberou a publicação de biografias sem autorização do biografado. “Como resumiu a presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, em junho de 2015, cala a boca já morreu, quem disse foi a Constituição”.

A Abraji acrescenta que “a censura foi banida pela Carta Magna de 1988 e pelo STF em sua decisão na ADPF 130, que derrubou a Lei de Imprensa”. “A liberdade de imprensa e a liberdade de expressão são fundamentais em qualquer democracia”, conclui a nota.

Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicação da USP, destaca que há uma discussão no mundo jurídico sobre qual valor deve preponderar nas decisões de juízes nesses casos: a proteção à intimidade ou o interesse público da sociedade:

— Quando o juiz proíbe a publicação, mas essa proibição fere o direito à informação da sociedade, na prática, o que eles está fazendo é censura judicial.

O presidente Michel Temer disse ontem que não há censura na ação contra os jornais.

— Não houve isso, você sabe que não houve — respondeu Temer, irritado, ao ser questionado sobre o assunto.

“INACEITÁVEL”

O professor da USP ainda destaca que cabe aos jornalistas e não aos juízes decidirem o que deve ser publicado.

— Do ponto de vista ético, é inaceitável que um Poder do Estado estabeleça um filtro entre o exercício da atividade jornalística e a sociedade. O jornalista arcará com os excessos e o abusos que ele vier a cometer, mas isso acontece a posteriori. É assim que funciona a democracia — opina.

Para Bucci, o caso em questão é ainda mais grave porque envolve o presidente da República, Michel Temer.

— Como chefe do Executivo, o interesse público avança alguns passos além do que avançaria no caso de uma pessoa comum. A vida privada do presidente e dos seus familiares constituem matéria de interesse público.

HACKER CONDENADO

A liminar que censurou as reportagens foi assinada pelo juiz Hilmar Castelo Branco Raposo na própria sexta-feira. A ação foi movida pelo subsecretário de assuntos jurídicos da Presidência da República, Gustavo do Vale Rocha, logo após o Planalto ter sido procurado pelo GLOBO, que solicitou uma resposta sobre o conteúdo da reportagem. Na decisão, o magistrado sustenta que “a inviolabilidade da intimidade tem resguardo legal claro” e proíbe a divulgação de qualquer conteúdo do celular de Marcela Temer.

As reportagens tratam da troca de mensagens que fazem parte do processo judicial contra o hacker Silvonei de Jesus Souza, que tramita na Justiça de São Paulo, ao qual o jornal teve acesso. Silvonei foi condenado a cinco anos e dez meses de prisão, em outubro do ano passado, por tentar chantagear Marcela Temer utilizando conteúdo roubado do celular e de contas de email da primeira-dama.

Na última sexta-feira à noite, assessores do presidente Michel Temer entraram em contato com o jornal para falar sobre o tema e enviaram uma mensagem com a reprodução da decisão judicial. Quando a mensagem chegou ao jornal, a reportagem já havia sido publicada no site. O GLOBO aguardou, então, a notificação oficial para retirá-la do ar, o que ocorreu ontem.

“A responsabilidade de separar o que seria invasão de privacidade é do editor e do repórter. Juiz de Direito não é editor de órgão de imprensa”

Eugênio Bucci

Professor da USP

O globo, n. 30507, 14/02/2017. País, p. 4