Foco na liberdade

Valdirene Daufemback

14/02/2017

 
 

Desde 1769, quando a Carta Régia do Brasil determinou a construção da primeira prisão brasileira, os problemas se tornam mais complexos. O que temos feito, na história recente inclusive, só agrava o que pretendemos resolver.

Seguir na direção contrária exige rever arranjos institucionais e mentais. O primeiro deles é assumir que privação de liberdade é parte das medidas de responsabilização penal, não a única. Essas medidas devem ser baseadas no devido processo legal, com garantia de defesa, visando a um resultado justo e individualizado. Em que momento isso se perdeu? Quando se passou a explorar os conflitos sociais de forma rentável por setores da mídia, serviços de segurança e um grupo de políticos populistas. Quando membros do Judiciário e Ministério Público passaram a se sentir integrantes da política de segurança pública e, não, da Justiça. Assim, Justiça passou a ser sinônimo de prisão, com a ilusão de que leis mais duras e novos tipos penais dariam conta dos conflitos sociais.

Outro reposicionamento é entender que serviços penais não se restringem à segurança pública. Profissionais de segurança pública estão focados na investigação, prevenção e eventual detenção de pessoas. Os serviços penais recebem pessoas a serem custodiadas e devem estar preocupados em criar ambientes para que elas tenham trajetórias socialmente integradas. Por muito tempo, as polícias se ocuparam da gestão prisional, deixando um legado baseado no controle, repressão e numa visão reduzida de segurança, contaminando a cultura institucional com indicadores equivocados, como número de fugas ou entrada de itens não permitidos, e não por resultados de reintegração social.

Ainda, a dicotomia entre segurança e garantia de direitos no sistema penal é falsa. Hierarquizar essas funções é dar permissão para ilegalidade. A segurança dinâmica, como estratégia de proteção a todas as pessoas, tem muitas ferramentas baseadas em ações de trabalho, educação e visitação. O contato, respeitoso e íntegro, entre servidores e pessoas presas é fundamental para dar segurança: quanto mais os servidores conhecem as pessoas sob sua custódia e atendimento, maior a previsibilidade no dia a dia. Serviços penais precisam ter foco na liberdade, enquanto a prisão for o fim, ensinaremos as pessoas a viverem subjugadas e fomentaremos uma sociedade com medo.

Por fim, precisamos reconhecer que política de drogas é uma questão de saúde, não de polícia. A demagogia da guerra às drogas tem bases mercadológicas, matou muito mais do que as próprias drogas, fortalece grupos que têm interesse no comércio ilícito, incentiva o uso problemático e desvia o trabalho da polícia dos crimes contra a vida para uma guerra contra pessoas vulneráveis.

Se essas questões não forem fundamentais para os serviços penais, estaremos só agravando os problemas. Prisão é coisa velha, mas pensar nela como integrante de um sistema de responsabilização penal e como uma política pública é um desafio que o Brasil precisa superar.

*Valdirene Daufemback é psicóloga e foi diretora de políticas penitenciárias do Departamento Penitenciário Nacional

 

O globo, n. 30507, 14/02/2017. Artigos, p. 13