Título: Nos porões da Síria
Autor: Tranches, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 08/12/2011, Mundo, p. A26

Documento obtido com exclusividade pelo Correio revela as técnicas de tortura utilizadas nas prisões. Médico ligado a entidade de direitos humanos defende que Al-Assad seja julgado por crimes contra a humanidadeNotíciaGráfico

Enquanto observadores são impedidos de entrar na Síria para verificar a situação dos direitos humanos no país, manifestantes que passaram pelas cadeias relataram a médicos locais técnicas de tortura e traçaram um cenário de verdadeiro horror nos porões da repressão das forças oficiais sírias. Os testemunhos foram coletados desde o início do levante popular, em março, e repassados ao Observatório Sírio de Direitos Humanos (OSDR), entidade com sede em Londres que há mais de uma década monitora e denuncia os casos de abusos no país. O Correio teve acesso exclusivo à primeira parte do relatório que será encaminhado nos próximos dias à Anistia Internacional e ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.

Em entrevista à reportagem, o coordenador do observatório, o médico patologista sírio Mousab Azzawi, radicado no Reino Unido, afirmou que o uso dessas técnicas reafirma e comprova que violações dos direitos humanos têm sido praticados na Síria. Segundo ele, mais do que nunca, as práticas de tortura devem ser consideradas crimes contra a humanidade em um processo no Tribunal Penal Internacional (TPI) contra o presidente Al-Assad, "sem hesitação ou atraso".

O texto reúne 13 práticas de tortura utilizadas contra manifestantes presos na Síria durante os protestos contra o regime. Azzawi explicou que foram coletados 59 testemunhos de prisioneiros que deixaram as cadeias e foram atendidos por médicos locais. Cada uma das práticas foi relatada por pelo menos três ex-detentos que não se conheciam e haviam sido presos em locais diferentes. Os ferimentos foram tratados e confirmados por médicos de hospitais sírios e por voluntários, que repassaram os relatos a Londres. Segundo Azzawi, as vítimas recebem tratamento na Síria. Ao menos 18 foram presas novamente nas províncias de Dierazzor e Deraa.

As duas partes restantes do documento — a serem divulgadas nos próximos 10 dias — deverão abordar as condições das cadeias sírias e revelar "técnicas chocantes". "Algumas delas remetem aos métodos utilizados apenas pelos nazistas", alertou Azzawi, que faz questão de ressaltar que o observatório não é ligado a qualquer grupo opositor sírio. Em um dos métodos relatados na primeira parte do documento, mais utilizado em mulheres, a pessoa era colocada nua dentro de um saco com um grande gato. No desespero para escapar, o animal usa "todas as garras e caninos" para sair, provocando ferimentos profundos no corpo da vítima. As técnicas são variadas e os relatos, perturbadores.

Haia O relatório do OSDR e o inquérito presidido pelo diplomata brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro podem colocar o regime de Al-Assad mais perto de um pedido de investigação junto ao TPI, em Haia (Holanda). No último dia 2, a alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Navi Pillay, defendeu que o governo sírio seja julgado naquela instância. Ontem, em entrevista à tevê norte-americana ABC, Al-Assad tentou se distanciar das atrocidades e negou ter ordenado qualquer medida repressiva às suas forças de segurança (leia nesta página).

Conor Foley, especialista britânico em combate à tortura e membro da Associação Internacional de Advocacia no Brasil, explicou ao Correio que, uma vez comprovada a ligação entre as forças de segurança e Al-Assad, o presidente poderá ser julgado pelo TPI. Isso ocorreria por meio de um documento assinado ou de um testemunho. Na opinião de Foley, é provável que este seja um dos próximos passos com relação à Síria, cujo governo está cada vez mais isolado. O Conselho de Segurança da ONU pode aprovar uma resolução pedindo uma investigação em Haia, a exemplo do que ocorreu na Líbia. "A tortura é um crime universal. Não importa se o presidente assinou uma ordem ou não", explicou Foley. Caso a denúncia se concretize, membros do governo poderão ser presos em qualquer país signatário do Tratado de Roma, que estabelece o TPI.