Valor econômico, v. 17, n. 4195, 14/02/2017. Brasil, p. A2

A indústria do aço

Por: Antonio Delfim Netto

 

Quando vemos o homem como ele é, despido da romântica "humanidade" moral que lhe atribuímos, vivemos os tempos normais. Trata-se de um animal territorial, dotado pela evolução biológica de um terrível e perigoso instrumento - a sua inteligência.

Com ela, submeteu a natureza que o criou e inventou sofisticadas "teorias" para separar-se em tribos que se veem com desconfiança dentro e nos limites do "território" que ocupam como "seu" e no qual estabelecem o seu Estado. Esse sentimento é tão poderoso que, frequentemente, é capaz de sacrificar a única coisa que, efetivamente, dispõe - a própria vida - para defendê-lo da cobiça real ou inventada de outras tribos internas ou externas.

    As pesquisas antropológicas recentes acumulam, cada vez mais, evidências que só o homem é capaz, pela escassez de alimentos, ou em nome de crenças sem nenhum suporte factual, de desenvolver poderosos preconceitos para "justificar" os mais pavorosos massacres de membros da sua espécie, quando os "supõem" de outras tribos. Não há registro desse comportamento em nenhuma outra espécie que a natureza produziu, talvez seja o resultado da sua inteligência!

    (...)

    A notícia mais amena é que a história revela, também, uma outra faceta da "natureza" do homem. Ainda que menos frequentes, ele dá demonstração de altruísmo. Há algumas semanas, assistimos a uma explosão universal de solidariedade da espécie em resposta ao trágico acidente que se abateu sobre a Chapecoense. Somos, diariamente, testemunhas que o homem é "humano", tanto quando "mata" como quando "consola" o outro da sua espécie.

    Essa é a realidade do mundo, a despeito das generosas mentes que insistem na solidariedade "natural", na cooperação "natural" entre todas as tribos e se ancoram no "politicamente correto", porque creem que os indivíduos têm dentro de si um mandamento moral que os impede de fazer ao outro o que não desejam para si.

    O mundo é cruel e, provavelmente, continuará a sê-lo até que a espécie humana se extinga pelo exercício imoderado do poder que a tecnologia colocou nas suas mãos. O ilustre Nikita Khrushchev disse, num momento de verdade: "O único desejo não saciável do homem é o poder, o pleno poder".

    Diante desses fatos, o que se impõe ao Brasil é a "realpolitik", a política olhada para seus problemas reais, tratando-os como eles são e não como gostaríamos que eles fossem. Nenhuma nação será independente se não tiver três autonomias: 1) a autonomia alimentar mínima, capaz de manter o abastecimento em momentos de impedimentos das importações; 2) a autonomia energética, capaz de manter o suprimento de energia para o funcionamento do seu parque produtivo mesmo nas condições climáticas mais severas; e 3) a autonomia militar, com instituições de defesa preparadas para dissuadir e impor altos custos a qualquer ambição de tribo externa.

    Pois bem. É exatamente para manter essas três autonomias que o país precisa de um setor siderúrgico eficiente e competitivo. Sem ele não há como produzir tratores, não há como produzir geradores e não há como produzir os equipamentos bélicos. Não se trata, obviamente, de produzir tudo internamente, mas de construir uma base material competitiva que possa ser expandida nos momentos de necessidade. A externalidade imensurável da tranquilidade interna e externa são muito importantes para o próprio desenvolvimento econômico.

    No caso do aço, a proposta da globalização é ridícula, principalmente quando sabemos que o maior produtor de aço é a China, que não é uma economia de mercado. Dos mais de 700 milhões de toneladas de capacidade ociosa do setor siderúrgico existente no mundo, a China é responsável por 400 milhões. Não é à toa que dispende quase US$ 20 bilhões por ano de subsídios para sustentá-la e poder praticar preços "políticos". E é, por isso, que todos se queixam da China na OMC.

    O setor siderúrgico nacional está sendo massacrado pela queda da demanda interna e pelo abusivo custo-Brasil, que lhe tirou a isonomia competitiva e lhe impôs uma ociosidade de cerca de 40%. Cálculos cuidadosos mostram que, no chão da fábrica, a produção de aço por homem/hora no Brasil é muito próxima das dos produtores mundiais com maior produtividade.

    Haveria um alívio se pudéssemos exportar 10 milhões de toneladas a mais do que já fazemos, o que é insignificante diante da demanda mundial. Esse aumento de produção para a exportação elevaria a utilização da capacidade instalada para 80%, patamar mínimo para que a siderurgia apresente resultados satisfatórios.

    Esse volume poderia ser alcançado com uma pequena redução dos preços de exportação. Qual é a dificuldade? Como a cadeia do aço é muito longa, os imensos juros reais internos pesam muito. Somados à resistência do governo de ressarcir os resíduos tributários sobre as exportações aumentam em mais US$ 60 por tonelada o custo do aço nacional.

    Nossa matriz de insumo-produto mostra que um aumento de R$ 1 milhão na demanda da indústria do aço resulta num aumento de R$ 3,3 milhões na produção da economia brasileira como um todo, o que sugere que, com um pouco de imaginação, é possível, sim, ressarcir parcialmente ao setor por meio do Reintegra os custos adicionais que o governo lhe impõe, sem ônus fiscal.

    A ociosidade enfrentada pelo setor do aço é também a realidade da indústria de transformação. A adoção do Reintegra ao patamar de 5% permitiria à indústria manufatureira aumentar o grau de utilização de sua capacidade instalada viabilizando a retomada do crescimento econômico com geração de renda e emprego no país.

    Não se trata de subsídios, como olha a miopia de alguns cientistas.

     

    Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras