Entrevista - José Padilha 
Miguel Caballero 
06/02/2017
 
 
'Moro e Nascimento é como comparar uma laranja e a lua’

O diretor da série sobre a Lava-Jato, a ser filmada este ano, vê a operação como uma luta de Davi e Golias, diz que não tratará o juiz como herói e rechaça a comparação com o policial de ‘Tropa de Elite’

Aos 49 anos, o diretor de “Ônibus 174” e “Tropa de Elite” 1 e 2 e colunista do GLOBO está vivendo em Los Angeles, mas se prepara para vir ao Brasil ainda este ano dirigir, para a Netflix, uma série sobre a Operação Lava-Jato. Por enquanto, faz mistério sobre o elenco — por precaução jurídica, os personagens representando os principais políticos e investigadores serão identificados por seus cargos, e não pelos nomes.

A série é baseada no livro do jornalista Vladimir Netto, da TV Globo, sobre a operação, mas também contou com uma equipe própria de pesquisa, que entrevistou inclusive presos pela Lava-Jato nas cadeias de Curitiba, além de procuradores e policiais que participam das investigações. Padilha promete revelar acontecimentos de bastidores da operação desconhecidos do público e contar detalhes da pressão sofrida pelos investigadores. O roteiro é assinado por Elena Soares, e os textos dos primeiros episódios estão sendo finalizados — a série terá lançamento mundial, ainda sem data prevista, e mais de uma temporada garantida.

Que tipo de revelações a série poderá trazer ao público? Qual deve ser o tom da abordagem à operação?

Se eu contar não serão mais revelações! O essencial, o que gostaria que o público compreendesse, é a natureza das dificuldades que os policiais, os procuradores e os juízes que iniciaram e levaram a Lava-Jato a cabo tiveram que enfrentar. Tratase de um briga de David contra Golias, onde a força tarefa da Lava-Jato sofreu uma enorme pressão do establishment e da quadrilha de empreiteiros e políticos que domina Brasília faz tempo. Acho importante também que o público compreenda que o mecanismo de corrupção que a Lava-Jato investiga coexistiu com partidos de diferentes ideologias, e que a Lava-Jato seguiu uma trajetória investigativa cronológica e pragmática, e não ideológica. Prova disso é que depois de expor o PT, a operação agora esta expondo o PMDB e o PSDB. E todos estão vendo a reação destes partidos contra a operação.

Pela aprovação eufórica que ambos causaram em boa parte da população ávida pela punição a corruptos, como vê as comparações entre o juiz Sérgio Moro e o Capitão Nascimento de “Tropa de Elite”?

Posso comparar uma laranja com a lua, uma bota com um sorvete... Comparações são construções teóricas fáceis, e na maioria das vezes destituídas de qualquer valor intelectual. Em geral, as comparações entre Moro e Nascimento caem nesta categoria.

“Tropa de Elite 1”, principalmente, recebeu críticas por supostamente “heroicizar” o Capitão Nascimento. É uma preocupação sua que isto não ocorra com algum personagem da série da Lava-Jato?

“Tropa de Elite” mostrou Nascimento torturando e matando. De forma explicita. É evidente que o filme era uma crítica do BOPE, e não um elogio à violência policial. Era evidente que Nascimento estava reproduzindo o ciclo de violência criticado no filme ao transformar Mathias, um camarada bem intencionado, em um policial como ele… Foi assim que o filme foi entendido no exterior. No Brasil, Nascimento foi considerado herói por boa pate do público. A questão que se coloca é: por que isto aconteceu no Brasil? Seja como for, não desenvolvo personagens para fazê-los heróis. E não tento dizer ao público como pensar acerca de meus filmes. Será igual com a Lava-Jato.

Nos "Tropas de Elite", o senhor trilhou um estilo que unia as denúncias de problemas do Rio, calcadas na realidade, à ficção, a narrativa de cinema. Qual o risco de a necessidade de estar ancorado à denúncia limitar o lado artístico da ficção? Ou o reverso, de a ficção enfraquecer o teor de denúncia?

Ambos os riscos existem. O essencial é estar consciente deles e fazer escolhas coerentes do ponto de vista da dramaturgia, sem sacrificar o aspecto heurístico (investigativo) do projeto. Vez por outra críticos de cinema chamam meus filmes de didáticos. Eles têm toda razão.

A cada reviravolta ou fato inesperado relacionado à Lava-Jato, são recorrentes, no Brasil, comentários como “se um roteirista escrevesse isso, diriam que está exagerando” ou brincadeiras dizendo que a realidade da Lava-Jato no Brasil supera em muito a ficção de “House of Cards”, a série política de maior sucesso. Como escrever uma série de ficção atraente diante de uma realidade tão impactante?

Uma série de televisão tem também uma lógica interna, que deriva de escolhas relativas à dramaturgia. Acontecimentos aparentemente suprarreais cabem em certas estrutura narrativas e não cabem em outras. Acho que a Elena (Soares, roteirista) fez escolhas muito corretas neste sentido. Já estou acostumado a lidar com fatos “inverossímeis”. De “Ônibus 174” a “Narcos” (série dirigida por Padilha para a Netflix sobre a trajetória do narcotráfico na Colômbia), já narrei uma penca deles!

Ainda estamos muito longe da fase de conclusão dos processos instaurados a partir das investigações. Como contar uma história totalmente em aberto e muito imprevisível?

Mantendo a narrativa em aberto. Por isso acho que filmes não sejam a forma correta de abordar a Lava-Jato.

Episódios mais recentes e inesperados, como a morte do ministro Teori Zavascki, já entraram na história também?

Sim.

O senhor já se posicionou a favor da cassação da ex-presidente Dilma Rousseff e do atual presidente, Michel Temer pela Justiça Eleitoral por causa das denúncias sobre a campanha de 2014. De fora do país, como vê o governo Temer?

Temer e Dilma foram eleitos com dinheiro de caixa dois e de corrupção, aportado na sua campanha por uma quadrilha que achacou o estado. Desde sempre estiveram ilegais na Presidência da República. Todos nós sabemos disso. O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) também sabe.

 

O globo, n. 30499, 06/02/2017. País, p. 6