Problemas estruturais

06/02/2017

 

 

Era inexorável a contaminação político-ideológica do debate sobre as reformas necessárias para retirar o país da crise fiscal, sendo uma das principais a da Previdência. Mesmo em tempos menos tensos isto não deixaria de ocorrer. Como acontece na Europa ocidental — região de economias e sociedades desenvolvidas —, sempre que é necessário rever mecanismos de seguridade social.

É o caso do Brasil. Mas aqui há o agravante de a missão de fazer estas reformas ter ficado com o governo de Michel Temer, vice de Dilma Rousseff (PT), retirada do Planalto por um processo de impeachment, apoiado, entre outros, pelo partido de Temer (PMDB), e instaurado por crimes de responsabilidade cometidos pela presidente ao desrespeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Há, portanto, uma carga adicional nas críticas feitas à reforma da Previdência, forçada por simples lógica aritmética: as despesas com benefícios previdenciários e pensões ultrapassam a receita proveniente das contribuições dos trabalhadores no setor formal da economia (com carteira assinada), e são estruturalmente crescentes. No ano passado, o déficit quebrou a barreira dos R$ 100 bilhões, com projeções muito preocupantes. E o desemprego não explica tudo.

As razões que impõem esta reforma — que chega tarde, daí precisar ser dura —, de fundo demográfico, são idênticas às que volta e meia impelem países desenvolvidos a fazer o mesmo, e com iguais desdobramentos: incompreensão de muitos e temor dos políticos. Este é um dos momentos em que se vê a diferença entre a estatura dos homens públicos.

No atual debate sobre a reforma da Previdência, uma corrente tenta desqualificar o déficit com argumentos fantasiosos. Dependendo da forma como se torturem as estatísticas, elas mostram qualquer cenário. Até que a Previdência brasileira é superavitária. Basta, por exemplo, retirar do INSS a aposentadoria rural, e tachá-la de benefício social, alocado em alguma rubrica fora do INSS. É simples, mas mentiroso.

Não se consegue esconder que as despesas do Estado, não importa onde estejam registradas, geram um déficit enorme, na faixa dos 9% do PIB. E se tirarmos dos gastos os juros, uma conta elevada, mesmo assim há um rombo acima de 2% do PIB. Mais: das despesas primárias (sem os juros), os gastos previdenciários já são mais de 40%. Logo, é preciso revê-los.

Sob o aspecto demográfico, a Previdência, como está, fica ainda mais insustentável. Pois, num país em que a expectativa de vida da população está felizmente em alta e já passa dos 75 anos, o fato de a idade média de se aposentar ser de 58 anos é um problema estrutural grave. E, como a faixa jovem da população tende proporcionalmente a ficar menor, é indiscutível que o INSS estará falido em algum tempo. Afinal, mais pessoas receberão benefícios por mais tempo e menos contribuirão para o INSS. Não há ideologia que refute esta verdade e desqualifique a proposta de uma idade mínima (65 anos) para a habilitação à aposentadoria, como na maioria dos países.

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Aprofundar injustiças

Margarida Salomão 

06/02/2017

 

 

O recente relatório da Oxfam revela que a economia é planejada para funcionar em favor do 1% mais rico da população mundial: oito homens possuem o mesmo montante de riquezas que a metade mais pobre da população. No Brasil, não perdemos em perversidade: seis homens têm a mesma riqueza que 100 milhões de brasileiros.

Neste contexto, o ilegítimo governo brasileiro tem a desfaçatez de buscar o equilíbrio fiscal por meio de Reforma da Previdência (PEC 287/16), justificada pela propaganda oficial (explícita ou subliminar) com ameaças apocalípticas.

A bem da racionalidade, é discutível o cálculo do “rombo” (futuro, pois, até 2015, o orçamento da Seguridade Social era superavitário em R$11,2 bilhões). Deve-se considerar no abatimento do “rombo” que a gestão da Previdência promoveu, nos últimos anos, em nome de uma expectativa não confirmada de retomada do investimento, desonerações da folha de pagamento. Na mesma conta, acrescentar o somatório da dívida fundada com a Previdência mais o montante da sonegação praticada pelos grandes, de R$ 340 bilhões, segundo a ANFIP.

Além disso, a despesa previdenciária tem papel social no Brasil, com seus 33 milhões de beneficiários. Em 82% dos municípios brasileiros, o repasse da Previdência é maior que o orçamento municipal. Cortar esses recursos prejudica a subsistência da população de 3.875 cidades.

Denunciamos ainda a injustiça expressa nessa proposta. Como falar de idade mínima num país com tamanha desigualdade, regional e social? Como ignorar a diversidade no perfil do trabalho e no seu acesso que diferencia as profissões dos mais e menos escolarizados? Como tratar o trabalho rural da mesma forma que o urbano? Como castigar os professores e professoras, já assoberbados por uma tarefa cinicamente classificada como essencial? Como adotar “igualdade de gênero” para idade e tempo de contribuição, desconsiderando as condições do trabalho feminino, a sobrecarga da(s) outra(s) jornada(s), as desigualdades no reconhecimento e na remuneração das mulheres?

Essa proposta aprofunda injustiças e constitui uma real ameaça à vida. A seu modo, ainda atende ao antigo desejo do setor bancário, com estímulos para que as pessoas busquem programas de previdência privada.

A PEC 287/16 avança na desconstrução do tardio estado de bem-estar social brasileiro, resultante da redemocratização e inscrito na Constituição de 88.

Em grave crise social, de que rebeliões nos presídios não são mais que a ponta do iceberg, este governo ilegítimo busca tornar real a predição da Professora Laura Carvalho: Enquanto a insustentabilidade do sistema previdenciário em meio à elevação da expectativa de vida for vista pela maioria como mais dramática que a insustentabilidade de um sistema penitenciário em meio à produção de um número cada vez maior de excluídos, estaremos condenados à barbárie.

*Margarida Salomão é deputada federal (PT-MG)

 

O globo, n. 30499, 06/02/2017. Artigos, p. 14