Valor econômico, v. 17, n. 4193, 10/02/2017. Opinião, p. A2

Um virtual cartão de fidelidade antidumping

É indispensável recuperar a disciplina no uso de ações de proteção

Por: José Tavalres de Araujo Jr.

 

Sacos de juta são fabricados no Brasil desde o final do século XIX. Sua tradicional fonte de demanda advém das exportações de produtos agrícolas como açúcar, cacau e café. Apesar de sua tecnologia rudimentar e da abundância de matérias primas locais, a indústria nacional de embalagens de juta é protegida por uma tarifa de importação de 35% e, desde 1996, recebe incentivos fiscais por meio de um instrumento de política industrial que só existe no Brasil: as portarias de Processo Produtivo Básico (PPB).

Além disso, os produtores de sacos de juta são amparados por medidas antidumping renovadas regularmente a cada cinco anos desde 1992, aplicadas às importações oriundas de Bangladesh e da Índia. Porém, nos últimos 20 anos, Bangladesh não exportou este produto para o Brasil e as vendas da Índia foram mínimas na maior parte do período. Em 2015, por exemplo, alcançaram apenas US$ 2 mil e foram nulas em 2016.

A aplicação de direitos antidumping sobre importações inexistentes é uma afronta às regras da Organização Mundial do Comércio (OMC). Segundo o Decom1, esta anomalia é necessária para coibir a atuação das firmas daqueles dois países no mercado brasileiro, embora tais firmas jamais tenham sido acusadas de dumping por nenhum outro membro da OMC. Para elaborar o parecer que recomendou a última renovação da medida, uma equipe visitou Calcutá durante duas semanas em fevereiro de 2016, a fim de conferir os dados sobre a produção de sacos de juta na Índia.

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A renovação automática de medidas antidumping supérfluas tornou-se crescente no Brasil durante os últimos dez anos. Neste período, o Decom transformou este instrumento num virtual programa de fidelidade, cujos principais beneficiários são os monopólios e oligopólios que atuam nas indústrias de bens intermediários, como a química e a siderurgia.

Em contraste com o caso descrito acima, cujos efeitos perversos estão restritos aos custos de embalagem de algumas mercadorias de exportação, direitos antidumping sobre insumos químicos e siderúrgicos geram impactos generalizados sobre a estrutura industrial do país.

Como mostra o relatório anual do Decom de 2015, cerca de 80% das medidas em vigor atualmente são destinadas a bens como tubos de aço, PVC, vidros planos, resinas de polipropileno, acrilato de butila, pneus de carga, fios de viscose, ácido de sódio, eletrodos de grafite, porcelanato técnico, N-butanol, laminados planos de aço, refratários básicos, magnésio metálico, etc.

Outro aspecto notável das investigações conduzidas pelo Decom é o desperdício de recursos públicos: todos os 357 casos abertos entre janeiro de 2006 e dezembro de 2015 incluíram verificações in loco das respostas fornecidas pelas firmas dos países citados na investigação. Embora este procedimento esteja previsto nas normas da OMC, sua utilidade tornou-se duvidosa nos dias atuais, dada a multiplicidade de base de dados disponíveis na internet sobre qualquer aspecto da economia contemporânea.

Numa economia aberta, o papel do direito antidumping é conferir proteção seletiva e temporária àquelas indústrias que não estão preparadas para enfrentar a concorrência de importações. Na segunda metade do século passado, as normas multilaterais passaram por sucessivas adaptações, para permitir que os governos tivessem a liberdade de recorrer a este mecanismo quando julgassem conveniente.

O aprimoramento das regras demandou um paciente esforço diplomático, ao longo de várias rodadas de negociações no Gatt (Acordo Geral de Tarifas e Comércio) e, posteriormente, na OMC, visando conciliar duas metas que, em princípio, eram conflitantes. Por um lado, a fim de evitar disputas comerciais indesejáveis, era preciso definir procedimentos objetivos e transparentes, baseados em conceitos claros sobre a prática de dumping, os danos sofridos pela indústria doméstica e o vínculo causal entre os dois fenômenos. Por outro lado, os governos procuravam assegurar uma autonomia plena para aplicar estas normas de acordo com suas prioridades domésticas.

No Brasil, a legislação antidumping foi introduzida em 1987, com o objetivo explícito de criar mecanismos compensatórios para o processo de abertura comercial que iria começar com a reforma da tarifa aduaneira em 1988. Nos anos seguintes, até 2005, este instrumento foi usado com relativa moderação, seguindo os critérios referidos no parágrafo anterior, não obstante alguns deslizes, como o caso dos sacos de juta.

Entretanto, a partir de 2006, o governo brasileiro tornou-se um dos principais usuários de antidumping entre os membros da OMC. De 2007 a 2013, o número de investigações abertas superou o total registrado nos 18 anos anteriores de existência deste instrumento no país. Segundo os dados da OMC, o Brasil se manteve na posição de líder mundial na abertura de investigações antidumping durante quatro anos consecutivos, entre 2011 e 2014.

No âmbito da agenda microeconômica que o governo Temer pretende seguir, é indispensável recuperar a disciplina no uso de ações antidumping, a fim de sanar as anomalias aqui apontadas. Ao contrário de outros tópicos desta agenda, cuja implementação depende da aprovação de leis e negociações complexas, neste caso a providência é simples: basta que os ministros membros daCâmara de Comércio Exterior (Camex) determinem a mudança de conduta do Decom.

1- O Departamento de Defesa Comercial (Decom) do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços é o órgão que conduz as investigações antidumping no Brasil.

 

José Tavares de Araujo Jr. é diretor do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (Cindes).