Não é invenção brasileira

27/02/2017

 

 

Já é parte da História o primeiro embate jurídico logo no início do julgamento do mensalão, em 2012, no Supremo Tribunal Federal (STF). Aberto os trabalhos, sob a presidência do ministro Ayres Britto, a defesa de acusados de participar daquele esquema de desvio de dinheiro público para montar uma bancada de apoio parlamentar a Lula pediu que vários réus, sem foro privilegiado, tivessem os processos remetidos para a primeira instância.

O ministro-relator, Joaquim Barbosa, fizera seu voto em bloco, considerando os quase 40 denunciados pela Procuradoria-Geral da República, por entender que eles tinham atuado como uma “organização criminosa”. Como havia parlamentares envolvidos, o processo estava no Supremo. E devido à característica da operação que fora montada pela cúpula do PT — José Dirceu, José Genoíno, Delúbio Soares etc. — achava o MP federal, com a concordância de Barbosa, que todos deveriam ser julgados juntos.

Esta posição foi a vencedora, e houve várias condenações de pessoas poderosas, algo de forte ineditismo no país. A defesa desejava transferir réus para a primeira instância porque o cipoal de leis e as inúmeras possibilidades que têm os advogados de usá-las, em recursos sucessivos e infindáveis, na prática garantiriam a impunidade dos clientes, pela quase certa prescrição dos crimes.

Assim, o fato de o Supremo, no ano passado, em julgamento de recurso de um preso, ter restabelecido o entendimento anterior da Corte segundo o qual sentenças podem começar a ser cumpridas na sua confirmação na segunda instância significou importante avanço contra a cultura da impunidade existente no país, combustível poderoso da própria criminalidade. Porque, sem que as punições estabelecidas na Justiça sejam de fato aplicadas, o Estado perde o poder dissuasório.

Como sempre nessas circunstâncias, há enorme discussão sobre conceitos constitucionais que estariam sendo descumpridos. No caso, o da presunção da inocência. Sucede que o condenado em segunda instância começa a cumprir a pena, mas continua a recorrer a tribunais superiores.

O mesmo debate ocorreu em torno da Lei da Ficha Limpa, proposta por um movimento popular, sustentado em mais de um milhão de assinaturas, para que passasse a ser aplicado o conceito de presunção da inocência de forma realista, para aspirantes a cargos eletivos. Pessoas já condenadas em mais de uma instância podiam buscar abrigo em Casas legislativas, por exemplo, na falta do “transitado em julgado”. Ou seja, da confirmação da condenação em última instância. Para quem pode contratar bons advogados, isso quase nunca acontece. Prescreve antes. Com a Ficha Limpa, a condenação em segunda instância passou a livrar da vida pública criminosos disfarçados de políticos. (...)

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Inconstitucional e desumano

Luciano Bandeira 

27/02/2017

 

 

Sob a luz jurídica, cláusula pétrea’ (“pedra”, em latim) é ordenamento basilar, fundamental e essencial à grande engrenagem democrática que é a nossa Constituição. Como uma rocha, sustenta os alicerces legais do país e, de tão importante para o coração (e a alma!) de nossa Carta Magna, não pode ser abolida por nenhum dos três Poderes da República — salvo por meio de nova Constituinte.

Na visão humanitária, tais cláusulas são imprescindíveis, pois preservam no DNA constitucional princípios universais dos direitos humanos, entre eles, o da presunção de inocência — representado pela máxima “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (artigo 5º, inciso LVII)”.

Independentemente da linha de análise, percebe-se que a Justiça cometeu a mais lamentável decisão de sua história ao permitir a prisão imediata logo após a manifestação de um Tribunal de Segundo Grau. Usurpar a liberdade do indivíduo antes do pronunciamento das cortes superiores é atentado à segurança jurídica e social.

A atitude do STF transformou em execução definitiva o que é provisório, impondo um pesado ônus a milhares de réus em processos em curso, que agora estão na iminência de serem presos, mesmo pendente a reanálise do caso pelas instâncias superiores.

As alterações e implicações são profundas e atingem completamente o equilíbrio constitucional, suscitando o risco da condenação de indivíduos que podem ser inocentes. Se recursos existem para seu manejo, deve a administração judiciária adotar mecanismos necessários à agilidade do processo, e não optar por atalhos.(...)

Aqui não há tolerância com a corrupção. Pelo contrário. As absurdas revelações que estão vindo à tona com a Lava-Jato devem ser apuradas e seus responsáveis, punidos.

Leis garantem a base da sociedade moderna. Fornecem a segurança jurídica para a preservação do contrato social e consolidam a igualdade do estado democrático.

Na contramão, o desrespeito às normas desequilibra a balança da justiça, provoca um grave risco ao direito à isonomia cidadã e flerta com a barbárie e o autoritarismo.

A Constituição se afigura como defesa da sociedade aos arbítrios do Leviatã. O Estado e seus representantes não podem adotar medidas “justiceiras” em nome do combate à impunidade. Não se pode lutar contra ilegalidades com mais ilegalidades. Não podemos nos transformar nos transgressores a quem combatemos.

Nas palavras imortais de Ulysses Guimarães: “A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca”.

Luciano Bandeira é diretor da OAB-RJ

 

O globo, n. 30520, 27/02/2017. Editorial, p. 12