Valor econômico, v. 17, n. 4201, 22/02/2015. Opinião, p. A14

Federalismo mal resolvido

ICMS foi demolido pela guerra fiscal e União concentrou recursos

Por: Julio Gregory Burnet

 

Se os governadores entregarem os anéis, em breve irão os dedos e depois os braços, pois não há perspectiva, dentro da estrutura atual de receitas e despesas, de equilíbrio a longo prazo. O recente fechamento das fundações estaduais no Rio Grande do Sul é só um aperitivo. Muito mais será necessário cortar.

A entrega do anel de diamante Banrisul - Banco do Estado do Rio Grande do Sul - não resolverá o problema fiscal daquele Estado. Diferentemente da década de 90, onde a crise envolvia o endividamento dos Estados e a falência do sistema financeiro nacional, o desarranjo de hoje reflete a crise do federalismo brasileiro.

Note-se que a cogitada privatização do Banrisul levará tão somente a mais concentração do já hiperconcentrado mercado financeiro brasileiro. Difícil enxergar vantagem macroeconômica, exceto por interesses ocultos: com certeza não ajudará a baixar os elevados juros brasileiros.

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O argumento de que a concentração bancária inibe o risco sistêmico é falsa, pois no caso brasileiro são as instituições públicas ou privadas, "grandes demais para falir", que representam o verdadeiro perigo. O Banrisul, nesse sentido, é o último banco verdadeiramente regional com uma capilaridade e domínio de mercado invejáveis, com indicadores que demonstram operar em eficiência.

Por que a União não desconcentra o sistema financeiro e por que o Senado é omisso nesse assunto? São perguntas sem respostas há muito tempo. Muito mais sentido faria a divisão da Caixa Econômica Federal ou o Banco do Brasil em unidades regionais, desde que garantido que a propriedade não ficasse concentrada. O mesmo vale para os gigantes Itaú e Bradesco: será que são pontos de eficiência na estrutura produtiva do País ou se trata de oligopólio com grande poder de impor preços?

Mas esse não é o objeto deste artigo, a questão é que os governadores dos maiores Estados, exceto São Paulo, estão numa armadilha construída há quase 30 anos pela Constituição de 88. Mesmo com a irresponsabilidade fiscal em vários períodos, essa é um epifenômeno: o fulcro do problema é a estrutura de receitas e despesas das esferas estaduais, causa primeira do atual desajuste. Os déficits recorrentes ao longo de 40 anos nos vários Estados atestam isto.

Pelo lado das receitas, o ICMS - um tributo de características nacionais - foi demolido pela guerra fiscal com o agravante da geração do conhecido inferno tributário brasileiro em que, para o mesmo imposto, há 27 legislações diferentes. Do mesmo modo, a União, para resolver o seu problema fiscal, ampliou as Contribuições, eximindo-se de transferir parcela significativa dos recursos federais, prejudicando toda a federação com a concentração de recursos.

Somando-se a guerra fiscal, pelo menos no caso do Estado do RS, é fato conhecido o fraco crescimento das receitas frente aos demais Estados como resultado de seu tecido econômico peculiar: exportações aliadas à ampla base no agronegócio redundaram em menor crescimento das receitas de ICMS ao longo dos anos.

Pelo lado das despesas, a dívida pública, indexada ao IGP-M e juros de 6% ao ano, o excesso de encargos funcionais e as vinculações estaduais ou federais impuseram gastos muito acima da capacidade dos erários subnacionais.

Para além da reforma da Previdência e do controle de gastos pela lei do teto, além de outras reformas sobre as despesas de pessoal, é urgente uma redefinição de receitas e encargos das esferas governamentais. Faria todo sentido a revisão do sistema tributário nacional, incluindo-se as Contribuições na partição federativa, uma vez que a unificação da alíquota interestadual do ICMS será insuficiente para equacionar as receitas dos Estados. Ou numa troca entre ICMS e IR, com mais alguma compensação.

O novo pacto federativo deveria contemplar não apenas uma divisão mais adequada das receitas, mas também participação da União em áreas sob a responsabilidade dos Estados, como a segurança pública, mais especificamente no sistema prisional. Não há como os Estados, sozinhos, resolverem a crise atual: sem forte coordenação da União o problema irá se agravar ainda mais.

Do modo como hoje está a situação dos presídios, o massacre de Carandiru - de penosa lembrança para o país - já aparece como um acidente menor. É cristalino que a função judiciária ou, mais especificamente, o sistema de Justiça brasileiro está hipertrofiado: o sistema que julga - aliás, repleto de sinecuras - está infinitamente mais aparelhado que o sistema que executa e encarcera.

Ainda pelo lado das despesas, para uma maior eficiência da função educação, faz todo sentido a transferência do ensino médio dos Estados para a União, bem como a transferência dos quatro primeiros anos do ensino fundamental, de fato, para os municípios, pois muitos Estados ainda carregam parcela importante do Fundamental. Na situação de hoje, o gargalo da educação e, por consequência, da produtividade do país, se concentra no péssimo desempenho dos alunos do ensino médio.

Torná-lo uma prioridade de Estado com mais recursos e, novamente, sob coordenação da União, com certeza traria bons resultados a curto e médio prazo. Os Estados, perdidos em meio a dívidas e encargos previdenciários, certamente não levarão adiante nada que melhore este importante item da agenda do desenvolvimento nacional. Lembrando que a função educação no país é hipertrofiada: há um gasto desproporcional no ensino superior em detrimento do ensino fundamental e médio. Parece-nos que é um trade-off passível de negociação: menos ensino superior gratuito e mais ensino médio público.

Duas últimas e não menos importantes mudanças: fim de vinculações de qualquer natureza, seja atrelando receitas a despesas, seja relacionando salários federais a estaduais e municipais; e regramento com limitação da autonomia financeira dos poderes, pois provocam desordem em um sistema federativo. De fato sem essas mudanças a Lei do Teto será inócua pois continuarão existindo regras que forçam a expansão do gasto autonomamente e que se converterão mais tarde em litigância judicial e mais passivos aos já imensos passivos trabalhistas estaduais.

Embora tenhamos ainda um vasto campo para discussão das competências entre as esferas administrativas do país: meio ambiente, saúde, etc, é essa negociação que deve ser encaminhada pelos governadores com a União, aliás, não com a União, mas com o Congresso Nacional: uma revisão do pacto federativo. Sem ela, primeiro irão os anéis, depois os dedos e em seguida os braços.

 

Julio Francisco Gregory Brunet é economista e diretor do Banrisul. As opiniões expressas no artigo são do autor e não da instituição para a qual trabalha.