Fim do foro privilegiado: para todos?

Lenio Strecko 

25/02/2017

 

 

Oque é “verdade”? Numa conferência em São Paulo, o jovem professor disse: “É verdadeiro dizer que a água ferve a 100°C”. Um velho professor gritou, da plateia: “Então prove”. E ofereceu um fogareiro, uma chaleira e um termômetro. Ao atingir 98°C, a água ferveu. Ora, a água ferve a 100°C ao nível do mar e depende da pureza. São Paulo está a 800 metros acima do nível do mar. Logo, não era verdadeiro o que dissera o jovem professor. Isso se aplica à afirmação, repetida por toda a imprensa, de que o foro privilegiado é causa de impunidade, tudo baseado em pesquisa da FGV-Rio, segundo a qual 68% das ações penais de quem tem foro privilegiado prescrevem e só há 0,74% de condenações. A inferência da matéria: STF patrocina a impunidade. Acabemos com o foro por prerrogativa de função (privilegiado).

Com meu fogareiro e minha chaleira, digo: provem. Mostrem-me os números e os detalhes da pesquisa. 68%? De quê? Duplo equívoco. Primeiro, a notícia confunde — ao que parece, para inflar o percentual — prescrição com remessa para outra instância. Alhos com bugalhos. Segundo: qual o percentual prescreveu? Foram somados percentuais que não guardam qualquer relação entre si.

Ainda: juntar absolvição com pedido de arquivamento do procurador-geral da República, que é irrecusável, é temerário. Como culpar o STF por isso? Em síntese, dá-se a entender que a impunidade se concentra principalmente no STF, e que na primeira instância os processos andam rapidamente. Com isso, estaríamos autorizados a transferir tudo para a primeira instância? Será? Poderia lembrar que somente uma percentagem de 5%a 8% dos assassinos são condenados pela Justiça em primeiro grau. Quem condena julga melhor? Se condenar pouco é impunidade; por que isso só cai na conta do STF? Mais: prescrição é ruim? Sim, mas em 2010 e 2011 dados do CNJ mostram que prescreveram 2.918 casos de corrupção. A expressiva maioria não foi no STF.

É claro que a questão do foro decorrente do cargo (e não da pessoa) deve ser pensada com maior racionalidade. É causa de impunidade? Sim. O Brasil exagerou na dose. Mas será esta maior do que em outras instâncias? A impunidade não viria de outros fatores? Para dizer isso, necessito do meu fogareiro, da chaleira e do termômetro. A propósito: alguém imagina o ministro da Justiça julgado na primeira instância? Diz-se que deputados e senadores deveriam ser julgados na primeira instância. Perfeito. E ministro do STF também? E do STJ? E os desembargadores? Ou só acaba para alguns? Detalhe: sabiam que, transferindo tudo para a primeira instância, esses processos gerarão recursos, que chegarão ao STJ e ao STF? Ou, sem o foro privilegiado, serão proibidos os recursos? Isso não multiplicará os processos?(...)

 

O globo, n. 30518, 25/02/2017. País, p. 5