O globo, n. 30519, 26/02/2017. País, p. 6

O jogo de pressões na roleta do azar

Condenado por policiais e promotores, lobby pela legalização encontra respaldo em setores do governo

Por: LETICIA FERNANDES E GABRIELA VALENTE

 

Com apoio velado de setores da área econômica do governo, sob forte pressão do lobby de grupos empresariais e com a oposição ferrenha de Ministério Público, Polícia Federal e religiosos, o Congresso poderá decidir ainda este ano se, 70 anos após a proibição, libera ou veta de vez o jogo no país.

À margem da lei, o submundo dos jogos ilegais está mergulhado hoje em contravenções e crimes. Apenas no Superior Tribunal de Justiça (STJ) há nada menos que 1.081 decisões que envolvem jogatina. Essas ações estão recheadas de histórias trágicas como homicídios, tráfico e corrupção. O GLOBO fez uma análise temática dos pedidos de habeas corpus que envolvem o jogo no tribunal superior e verificou que, na maior parte das vezes, a contravenção não é o centro da investigação. Crimes mais graves são apurados.

Das mais de mil ações, 187 citam organizações criminosas e 109 falam em lavagem de dinheiro. Segundo o levantamento, o crime mais comum em ações que tratam sobre jogos de azar é o contrabando. São 336 ações que ressaltam esse tipo de crime. São citados descaminho, falsificação de dinheiro, corrupção de agentes públicos e políticos, tráfico de drogas e de influência, sonegação fiscal, além de organização criminosa, roubo de joias, prevaricação, receptação, porte ilegal de arma de fogo.

Quem defende o jogo apela para uma suposta montanha de recursos que entraria na economia formal, via pagamento de impostos. E as cifras para convencer são bilionárias. Em campanha contra a regulamentação, o Ministério Público Federal lembra, no entanto, que é justamente a crise das contas públicas que impede que o governo garanta a fiscalização necessária para liberar o jogo no Brasil. Sem fazer concursos públicos em larga escala, argumentam, seria impossível aparelhar uma agência fiscalizadora de jogos. Nesse cenário, estariam abertas as portas para a corrupção.

— Vão sonegar e vão corromper fiscais — prevê o procurador da República Peterson de Paula, responsável pela negociação com o Congresso. — Se legalizar o tráfico, vai gerar renda, não vai? Para arrecadar mais, vamos admitir grandes empresas explorando a prostituição? Há limite ético. Não é religioso, é ético.

Oficialmente, o presidente Michel Temer é contra a regulamentação e não deve interferir nas negociações dos projetos que estão no Congresso Nacional. No entanto, segundo fontes ouvidas pelo GLOBO, alguns ministros trabalham no caminho contrário. Seduzida pela possibilidade de ver entrar no caixa da União impostos oriundos da regularização dos jogos, a equipe econômica tem preparada uma medida provisória para permitir as apostas esportivas, caso o Congresso Nacional demore a aprovar os projetos. De acordo com técnicos graduados do governo, parte da provável arrecadação com apostas esportivas já estaria calculada no orçamento deste ano.

O Ministério da Fazenda não comenta o assunto. Oficialmente, a venda de 49% da Lotex (as loterias da Caixa) aparece como fonte de receita: R$ 3 bilhões aos cofres públicos neste ano. Porém, internamente, a pasta projeta arrecadar R$ 17 bilhões em três anos com a liberação do jogo. Só em 2017, a estimativa é de algo em torno de R$ 7 bilhões, sem contar com a operação da Lotex.

Uma das fontes ouvidas pelo GLOBO, que participa diretamente dessa negociação, diz que Temer teria sido convencido de que para o governo seria importante a arrecadação extra e que, por isso, atuaria discretamente pela aprovação do projeto que tramita no Senado, mas manteria um discurso contrário.

No Ministério do Turismo há um documento em construção, para ser lançado ainda no primeiro semestre, chamado “Brasil + Turismo”, que traz uma série de medidas para destravar gargalos do setor e fomentar a atividade turística no país. Uma versão preliminar do documento, ao qual O GLOBO teve acesso, lista a liberação dos cassinos como medida número 1. A pasta respondeu ao GLOBO, porém, que o programa será lançado em fases e que essa medida não entrará na primeira versão do programa.

O ministro do Turismo, Marx Beltrão, defende abertamente a liberação de cassinos em regiões pré-determinadas. Otimista, ele pedirá o apoio do presidente Temer para que o governo envie seu próprio projeto. Defende que o dinheiro arrecadado com esses empreendimentos vá para Saúde, Educação e Previdência. Ele avalia que poderiam ser abertas seis concessões imediatamente nos estados do Rio e São Paulo, e outras quatro nas regiões Sul, Centro-Oeste, Norte e Nordeste. A avaliação é que há espaço para abrigar até 20 empreendimentos como esse.

Além disso, uma agência regulatória, como a que existe nos Estados Unidos, deveria ser criada. Beltrão sustenta ainda que as apostas sejam feitas com cartão de crédito e CPF para evitar a lavagem de dinheiro.

— Na Argentina, não deu certo porque eles liberaram tudo que é jogo. Não queremos a banalização dos cassinos. A única pauta que eu defendo é a liberação dos cassinos com resorts integrados — disse o ministro.

 

DIVERGÊNCIA SOBRE CAÇA-NÍQUEL

Tão forte quando a polêmica que envolve o universo dos jogos de azar é o lobby em Brasília pela regulamentação das modalidades. É cena comum no Congresso ver lobistas pró-jogo acompanhando de perto as reuniões sobre o assunto e nutrindo relação próxima com deputados e senadores. Relator do projeto de lei que tramita na Câmara — há ainda outro projeto no Senado — , o deputado Guilherme Mussi (PP-SP) — genro de Sílvio Santos, um dos interessados em abrir um cassino em seu resort no Guarujá, em São Paulo — contou que um dos pontos de pressão que recaiu sobre ele foi a possibilidade de instalar máquinas caça-níquel em estabelecimentos comerciais, o que grandes empresários do setor são contra. Mussi, que também é contra, disse ao GLOBO que só conseguiu aprovar o relatório na comissão especial da Casa com a previsão desse ponto. Ele acredita, no entanto, que no plenário, caso o projeto seja votado, este mesmo ponto será modificado.

— Essa questão das máquinas de rua foi um texto em separado. Ou eu colocava no meu relatório ou não conseguiria aprovar. E foi um voto com a digital dos deputados que pediram — disse Mussi.

No Senado, por outro lado, o lobby dos investidores internacionais que já operam cassinos foi justamente para que a proposta que tramita na Casa deixasse a exploração das máquinas restritas aos cassinos e grandes complexos, já que o investimento para um cassino-resort é, nas contas dos empresários, de, no mínimo, R$ 500 milhões, e máquinas fora dos resorts significariam perda de atratividade.

Ainda com o status de capital do país, o Rio de Janeiro foi, por uma década, de 1933 até 1946, a meca dos cassinos no Brasil, chamada pela imprensa de “Monte Carlo da América do Sul”. Até serem proibidos pelo presidente Eurico Gaspar Dutra em abril de 1946, os luxuosos estabelecimentos eram frequentados pela nata da boemia carioca e por estrelas internacionais. Por ser proibido fazer propaganda do jogo nos jornais e rádios, os cassinos passaram a usar grandes atrações musicais como forma de atrair clientes para seus salões.