Valor econômico, v. 17, n. 4220, 23/03/2017. Política, p. A6

Câmara aprova terceirização irrestrita e muda legislação para temporários

 

Raphael Di Cunto

 
A Câmara dos Deputados aprovou ontem projeto de lei de 1998 que libera a terceirização de todos os setores das empresas, seja atividade fim ou atividade meio, e também no serviço público, com exceção de carreiras de Estado, como auditor e juiz. O texto, criticado pela oposição sob a acusação de não apresentar garantias para os trabalhadores, foi aprovado por 231 a 188 e seguirá para sanção do presidente Michel Temer.

Diferentemente do texto votado há dois anos pela Câmara, essa proposta não tem dispositivos para impedir a chamada "pejotização" - demissão de trabalhadores no regime de CLT para contratação como pessoas jurídicas (PJ) - e restringir os calotes nos direitos trabalhistas - o texto anterior obrigava o recolhimento de impostos antecipadamente e a retenção de valores. Não há também no projeto garantia de que os terceirizados terão os mesmos direitos a vale-transporte, refeição e salários dos demais.

O relator da proposta, deputado Laércio Oliveira (SD-SE), ex-empresário do setor de serviços e vice-presidente da Confederação Nacional do Comércio (CNC), afirmou que o mercado se autorregula. "As contratantes já exigem os comprovantes de pagamentos dos direitos trabalhistas antes de quitarem a fatura. Não precisa estar escrito na lei", disse. Para ele, o importante é diminuir a judicialização sobre quais setores podem ser terceirizados. Os direitos trabalhistas estarão garantidos na CLT e em acordos coletivos, afirmou.

Assessor informal de Temer, o ex-deputado Sandro Mabel afirmou ao Valor que vai sugerir à Casa Civil a edição de medida provisória (MP) para criar um fundo "anti-calote" que preserve a arrecadação do governo e os pagamentos dos direitos trabalhistas. "Será necessária uma MP para fazer alguns ajustes, como uma garantia, um seguro, de que as contribuições previdenciárias e encargos trabalhistas serão pagos", afirmou.

Mabel é autor do projeto 4330/04, que está parado no Senado e que contém a previsão de um fundo, com um percentual de 4% do valor do contrato, para garantir o pagamento dos encargos caso a empresa terceirizada deixe de honrar com seus compromissos. "O 4330 era mais firme na questão do calote", disse.

O projeto aprovado ontem é de 1998 e ficou paralisado na Câmara durante todo o governo Lula, apesar da pressão de empresários para que o assunto avançasse. Hoje os contratos de terceirização são regulados apenas por súmula do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que impede o uso na atividade-fim das empresas (aquela para a qual foi criada). Os terceirizados eram permitidos apenas para funções secundárias, como limpeza e segurança.

Ontem, os partidos da base orientaram quase todos o voto a favor do projeto para liberar a terceirização em todos os setores das empresas (exceto o transporte e vigilância de valores) e do funcionalismo público, excluindo carreiras de Estado. Dos 330 deputados da base que votaram, contudo, 93 foram ignoraram a posição do governo, número que pode comprometer na análise da reforma da previdência - que exige no mínimo 308 votos. Mais de um terço de PSB, DEM, PR e PV votaram contra.

O projeto promove ainda profundas mudanças na legislação do trabalho temporário, objetivo inicial do projeto encaminhado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) em 1998. Esse tipo de contrato terá o prazo triplicado, de três meses para nove meses, com possibilidade de ser ainda maior por acordo ou convenção coletiva.

Também torna muito mais abrangente o uso, permitindo a contratação para " demanda complementar" que seja fruto de fatores imprevisíveis ou, quando previsíveis, que tenham "natureza intermitente, periódica ou sazonal". A lei hoje permite apenas para substituição temporária de funcionários - doença ou férias, por exemplo - e acréscimo extraordinário de serviços.

Pela versão aprovada, a responsabilidade da empresa que contratar outra para terceirizar serviços será subsidiária. Ou seja, ela só poderá ser acionada quando esgotadas todas as tentativas de acionar judicialmente a contratada. Sindicatos e a oposição defendiam a responsabilidade solidária, como ocorre atualmente, em que a tomadora de serviço - e que costuma ter mais bens - pode responder a qualquer momento.

Os deputados favoráveis ao projeto só recuaram em um ponto: a anistia para as empresas que cometeram irregularidades que se tornariam legais com a aprovação do projeto. Com isso, poderiam pedir devolução de multas pagas. O relator retirou este trecho do relatório, dizendo que aumentaria a polêmica em plenário, mas que o governo informou que o impacto seria na ordem de R$ 12 bilhões. A anistia acabou rejeitada por 275 a 28.

Para a oposição, a terceirização aumentará o número de acidentes de trabalho e precarizará direitos. "O trabalhador, que agora será tratado como pessoa jurídica, deixará de ter 13º, férias. Ele passará de uma relação trabalhista para uma relação civil, de contrato. Não haverá proteção ao trabalho insalubre, ao trabalho noturno", criticou a deputada Maria do Rosário (PT-RS).

Relator da reforma trabalhista, que será votada no próximo mês, o deputado Rogério Marinho (PSDB-RN) criticou o PT por usar a terceirização quando estava no governo, mas agora se manifestar contra. "A Petrobras, de cada quatro funcionários, três são terceirizados. A Caixa Econômica também. O problema é que eles [PT] fazem de maneira malfeita e envergonhada", disse. Na avaliação do tucano, a modernização gerará mais empregos.

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Efeitos sobre mercado são incertos

 
Camilla Veras Mota
 
 
As mudanças que a terceirização e o trabalho temporário regulamentados pelo Projeto de Lei (PL) 4.302 promoverão sobre o emprego - e, por consequência, sobre a arrecadação -, na avaliação de especialistas, ainda não estão claras. A flexibilização que ambos os regimes proporcionam, de um lado, podem estimular as contratações legais, elevando a formalização da economia. Exigências que constam no texto, entretanto, e a insegurança que sua tramitação - em paralelo a uma proposta que tratava do mesmo assunto no Senado - gerou em muitas empresas, podem limitar o impacto ou mesmo torná-lo adverso, elevando a rotatividade, por exemplo.

O professor do departamento de economia da PUC-RJ Gabriel Ulyssea avalia que a medida pode fomentar as admissões com carteira assinada no curto prazo, mas, especialmente no caso do trabalho temporário - e na ausência de uma reforma trabalhista -, provocar aumento na taxa de rotatividade, que já é elevada no Brasil.

O texto votado ontem na Câmara prevê que os contratos de trabalho temporário tenham no máximo seis meses, prorrogáveis por mais três, com um período de "quarentena" - o intervalo exigido para que a mesma empresa volte a convocar o trabalhador que prestou serviço para ela sob esse regime - de três meses.

Para ele, o governo deveria ter concentrado seus esforços na reforma trabalhista, que tramita em comissão especial na Câmara e tem, em sua avaliação, benefício mais amplo para o setor produtivo - a possibilidade de adaptar a jornada de trabalho conforme a necessidade e de contratar funcionários em período parcial. "Se ela fosse aprovada, a terceirização não faria tanto sentido assim para boa parte das empresas", ele diz, já que muitas dessas companhias teriam instrumentos melhores de flexibilização à disposição. A terceirização ficaria mais restrita a setores como o da construção, que precisa de serviços especializados em etapas específicas de cada projeto.

Da forma como está escrito, com particularidades como a exigência de capital social mínimo de R$ 100 mil para que uma empresa seja prestadora de serviço temporário, o PL 4.302 pode criar ainda mais distorções no mercado de trabalho, beneficiando grupos específicos. "É mais um puxadinho brasileiro".

A aprovação do PL, diz Otávio Pinto e Silva, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do setor trabalhista do Siqueira Castro Advogados, não deve gerar uma "corrida à terceirização". Muitas empresas, ele pondera, sentem-se inseguras diante da forma como a terceirização tramitou no Congresso. O PL 4.302, de 1998, foi resgatado pela Câmara no fim de 2016, depois de ampla discussão acerca do PL 4.330, que trata do mesmo assunto e hoje está no Senado. "Quem garante que em seis meses, ou mais para frente, o projeto do Senado não passe e a responsabilidade da contratante, que hoje é subsidiária, passe a solidária?", questiona.

Pesquisador do Ibre-FGV e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), José Roberto Afonso pontua que as novas formas de contratação são inerentes às mudanças nos modos de produção e que a regulamentação, em última instância, tende a ter impacto positivo na formalização. "São fenômenos inevitáveis. A regulamentação dará mais segurança e proteção mínima aos serviços".

Ele acrescenta que a chamada "pejotização", a contratação de funcionários como pessoa jurídica - que recolhem menos impostos do que seus pares empregados sob regime CLT -, não seria disseminada pela nova legislação, como argumentam os que se opõem à medida. Ela já ganhou fôlego com a ampliação do Simples, a taxação sobre lucro presumido e a criação do microempreendedor individual (MEI). "E creio que já conte em nossa economia mais do que a terceirização", ressalta.

Para o economista da Opus Gestão de Recursos José Marcio Camargo, "não é claro" que haverá perda de arrecadação para o governo, como também colocam aqueles contrários à nova legislação. "A flexibilização pode incentivar as contratações formais", pondera ele, que avalia como positiva a aprovação do PL, à medida em que ele diminui a incerteza jurídica sobre os regimes de contratação e que reduz o custo de mão de obra para as empresas.